A virada do Minhocão
Avança o projeto de fechar o elevado para carros também aos sábados. Discussões sobre sua desativação ganham fôlego e movimentos promovem diversas atividades no local
No dia em que completou 417 anos, em 1971, a cidade ganhou uma obra que, décadas depois, seria vista como um presente de grego por muitos paulistanos: a Via Elevada Presidente Artur da Costa e Silva, o Minhocão. Batizado em homenagem a um dos presidentes do período da ditadura, o viaduto de 3,5 quilômetros de concreto puro construído sobre ruas importantes do centro foi vendido como uma grande solução para o trânsito, que já era bastante encrencado na época.
Seguindo tendências americanas, europeias e asiáticas, mas sem a leveza arquitetônica de projetos semelhantes erguidos no mesmo período no exterior, o trambolho de engenharia tinha como objetivo encurtar caminhos na metrópole. Antes dele, o trajeto da Praça Roosevelt ao Largo Padre Péricles, em Perdizes, era percorrido em até cinquenta minutos de carro. Após a inauguração, passou a ser feito em menos de cinco.
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A euforia, porém, durou pouco. Cinco anos depois, a prefeitura resolveu fechar a via durante a noite na tentativa de reduzir os acidentes e os buzinaços que viraram rotina ali, atormentando ainda mais a vida dos vizinhos, obrigados a conviver com uma pista que fica a 5 metros da janela. Nas décadas seguintes, os problemas se agravaram. Hoje, de segunda a sábado, ele recebe por dia mais de 70 000 veículos entre as 6h30 e as 21h30.
De acordo com o MapLink, sistema de monitoramento de tráfego, é um dos pontos mais congestionados da cidade, com trânsito intenso ou parado pelo menos quatro dias por semana nos horários de pico. Debaixo da estrutura que provocou a degradação do comércio e dos prédios residenciais da vizinhança, aglomeram-se hoje moradores de rua e usuários de drogas.
O primeiro sinal de que seria possível uma virada no Minhocão surgiu em 1989, quando o local passou a ser fechado nos domingos. Aos poucos, começou a ser ocupado nesse dia por pedestres, ciclistas e skatistas. Na última terça (12), a ideia de ampliar o uso do lugar como ponto de lazer da metrópole ganhou mais um impulso com a aprovação pela Câmara Municipal de uma lei que prevê o seu fechamento aos veículos também nos sábados.
“A nossa estimativa é que, até o fim deste semestre, os sábados sejam devolvidos à sociedade”, diz o vereador José Police Neto (PSD), autor do projeto. Isso depende ainda de uma segunda votação no Palácio Anchieta e da sanção de Fernando Haddad. Na quarta passada (13), um dia depois do aval da maior parte dos vereadores, o prefeito deu indicações de que pode aprovar a medida. “A partir da tarde do sábado, parece-me que a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) tem estudos que caminham nessa direção.
Vamos estudar o caso e levá-lo ao conhecimento da Câmara antes da segunda votação, para evitar o veto a um projeto que pode ser bom para a cidade”, afirmou ele, durante um evento no centro. A iniciativa representa também um avanço em relação a uma diretriz maior sobre o destino do Minhocão estabelecida pelo novo Plano Diretor, aprovado pelo Parlamento municipal no ano passado. Segundo ela, o Minhocão deverá ser gradualmente desativado como via de trânsito até 2029, quando será demolido ou transformado em parque.
Atualmente, nos períodos em que não há carros passando por ali, o lugar já virou palco de vários eventos. Um dos primeiros foi a feira gastronômica, que, desde 2012, passou a fazer parte da agenda da Virada Cultural da prefeitura. Depois disso, surgiram outras iniciativas promovidas por diversos grupos. Neste domingo (17), ocorrerá por lá a feira gastronômica Benê Food Des Arts, com trinta expositores. Além das ofertas de comida, haverá atividades como troca de livros e oficinas de reciclagem. Em 5 de julho, o lugar será ocupado por uma festa junina promovida por coletivos. São esperadas cerca de 5 000 pessoas. Na área cultural, vem se destacando o trabalho no local da companhia de teatro Esparrama.
Desde o fim de 2013, os atores se empoleiram na janela de um dos prédios vizinhos para apresentar o projeto Janelas do Minhocão, que inclui a apresentação de várias peças, sempre aos domingos. A última temporada ocorreu entre fevereiro e março. A próxima está marcada para junho e julho. Os bichos de estimação também ganharam espaço no asfalto, há dois anos: o grupo Minhocães se reúne a partir das 21h30 de segunda a sábado, promovendo um passeio noturno para ao menos vinte cachorros e seus donos. Ocorre ainda desde abril no local o Mercado das Pulgas, com a venda e a troca, em datas marcadas, de diversos produtos usados.
Além de agitarem o pedaço, os ativistas do elevado estão tentando melhorar a infraestrutura da área. Exemplo disso foi a oferta, a partir da semana passada, de internet wi-fi gratuita, viabilizada pela Associação Parque Minhocão. O sinal vem do apartamento-sede do movimento, na esquina da Avenida São João com a Alameda Glete. Recentemente, a prefeitura anunciou a implantação de jardins verticais nas chamadas empenas cegas (paredões sem janelas) de edifícios vizinhos ao Minhocão. “Isso diminui a poluição sonora e o calor, já que as plantas funcionam como almofadas que combatem o som e refrigeram em até 7 graus os prédios”, diz o paisagista Guil Blanche, fundador do Movimento 90º e consultor desse projeto do governo no elevado.
A partir do último dia 5, os condomínios interessados podem se inscrever, enviando uma carta de intenções à Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente. A prefeitura não tem data para o início da implementação, que deve beneficiar aproximadamente 140 endereços. O custo da obra, estimado por Blanche em 450 000 reais a cada prédio, será bancado pelo programa de compensação ambiental. Ele obriga construtoras a fazer melhorias na cidade em troca da licença para erguer novos empreendimentos.
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A discussão sobre o futuro do Minhocão divide os paulistanos. Pesquisa Datafolha de 2014 mostrou que, para 53% dos entrevistados, o elevado deveria continuar como está, ou seja, voltado apenas para carros. Outros 23% acham que ele deveria virar um parque. Apenas 7% são a favor da demolição e 17% não souberam responder. A turma que defende a ideia do parque é uma das mais ativas no lobby. “Já colhemos 7 000 assinaturas que mostram como as pessoas gostam de usar a área para correr, fazer caminhada e se entreter”, diz o engenheiro Athos Comolatti, fundador da Associação Parque Minhocão, formada por arquitetos, professores, ativistas e artistas. Uma das mais entusiasmadas com o movimento é a chef Janaina Rueda, proprietária do Bar da Dona Onça, na República.
No endereço, aliás, costumam ocorrer reuniões da Associação Parque Minhocão. Segundo Janaina, com a transformação da via em uma área verde haveria mais investimento na região. “Sou apaixonada pelo High Line, de Nova York, e queria muito uma versão paulistana”, diz. O jardim suspenso criado na maior cidade americana é inspiração para a construção de um projeto semelhante em São Paulo. Com 1 quilômetro a menos que o Minhocão, o High Line foi criado em uma linha férrea desativada de Manhattan. Por aqui, tramita na Câmara um projeto de lei de 2014 que propõe a criação do Parque Municipal do Minhocão. Os defensores da ideia chegaram a encomendar a alguns estúdios esboços prevendo o que seria a obra. Em um deles, a estrutura vira uma espécie de praia urbana, com espaço até para um campinho de futebol.
De acordo com alguns especialistas, no entanto, esse tipo de intervenção, ainda que cheio de boas intenções, traria mais problemas que benefícios à capital. Para eles, a demolição da obra é o melhor caminho a ser adotado. “Não se pode curar câncer com aspirina”, compara Valter Caldana, diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “A existência do Minhocão é um fator limitante para o desenvolvimento da cidade e a qualificação dos espaços públicos, pois os estragos que ele provoca não são reversíveis com ações paliativas. Outra questão é que a estrutura está comprometida com infiltração, desnivelamento e inunda com as fortes chuvas.”
A ideia de transformar o viaduto em pó agrada a uma ala dos moradores do entorno. “Queremos eliminar de uma vez por todas essa ilha de calor de concreto e com altos índices de concentração de poluições atmosférica, sonora e visual”, afirma Francisco Machado, vizinho do elevado e diretor do Movimento Desmonte do Minhocão.
Em qualquer uma das hipóteses, parque ou demolição, resta uma questão importante a ser resolvida: onde vão parar os carros que circulam por ali? Sergio Ejzenberg, mestre em engenharia de transportes pela Escola Politécnica da USP, diz que a desativação da via teria grande impacto: “De imediato, o trânsito vai afogar a Avenida Amaral Gurgel, o que degradará ainda mais a região. Em pouco tempo, os condutores descobrirão alternativas pela Marginal Tietê, pela Avenida do Estado e por vias locais, que ficarão sobrecarregadas”. Uma das propostas da prefeitura para evitar o caos é a Operação Urbana Lapa-Brás.
A ideia seria criar uma via sobre a linha de trem existente nas redondezas, porém desativada desde a década de 90. Isso possibilitaria a extinção do Minhocão. Mas o projeto ainda está engatinhando, sem data prevista para começar a sair do papel.
Erguido rapidamente em catorze meses de trabalho ininterrupto, o Minhocão provocou estragos na mesma velocidade no mercado imobiliário do entorno. Já na primeira semana de funcionamento, registros mostram uma queda de 70% no preço dos aluguéis da área. Os prejuízos continuam até hoje. Um apartamento com vista para a via chega a custar menos da metade de um com as mesmas características a poucos quarteirões dali, no bairro de Santa Cecília, por exemplo. Unidades abaixo do viaduto, que não recebem luz, e no mesmo nível da pista, que recebem fumaça e olhares indiscretos de motoristas, custam até 60% menos.
“Sem o Minhocão, os imóveis dali vão se equiparar aos outros do centro”, afirma Mauro Peixoto, consultor da Empresa Brasileira de Estudos de Patrimônio (Embraesp). Quem enfrenta no dia a dia essas questões sonha com um futuro melhor. “É uma poeira que impede até de limpar as roupas. Você as coloca para secar no varal e elas ficam mais sujas do que antes”, conta a comerciante Irene Machado, de 55 anos, moradora da região há mais de quatro décadas. “Um dia, espero, esse inferno vai acabar. Quero viver para ver isso no chão.”
OS AGITOS DO CENTRO
Algumas ações e eventos culturais tomam conta do espaço
Minhocães: o grupo reúne pessoas que querem passear com seus cachorros de estimação no viaduto. Os encontros acontecem de segunda a sábado a partir das 21h30.
Benê Food Des Arts no Minhocão: evento gastronômico e cultural que une barracas e food trucks, ao lado de atividades como troca de livros, oficinas de reciclagem e intervenções artísticas. Será realizado em 17 de maio.
Quem é você, Minhocão?: sessão de fotos planejada pela produtora L84Cake, que vai produzir um livro com o material coletado para ser exibido em Londres no fim do ano. Marcada para 17 de maio, a partir das 10 horas.
Mercado das Pulgas: troca e venda de diversos artigos, como roupas, comidinhas, livros e até bicicletas. A próxima edição será em 24 de maio.
Mercado da Minhoca: voltado para o comércio, nele são vendidos quinquilharias, roupas e objetos usados. Acontece em 31 de maio.
Janelas do Minhocão: o projeto utiliza as janelas dos prédios em frente ao elevado para exibir peças de teatro, enquanto a plateia assiste às encenações do próprio viaduto. Os espetáculos acontecerão todo domingo, de 14 de junho a 26 de julho.
Festa junina no Minhocão: tradicional comemoração da região, terá dois palcos para música, barracas com brindes para crianças e outras atividades. Está marcada para 5 de julho.
Rede wi-fi: lançada neste mês pela Associação Parque Minhocão, a rede está instalada no apartamento-sede do movimento (na esquina da Avenida São João com a Alameda Glete) e é gratuita para todas as pessoas.
ENFEITAR OU DERRUBAR?
Os detalhes da discussão a respeito do futuro do viaduto
Quem defende o parque
Associação Parque Minhocão(formada por arquitetos,professores, ativistas e artistas)
Coletivos que atuam com atividadesno local (Marquise Minhocão,Acupuntura Urbana, Movimento90º, Vozes do Minhocão, entre outros)
Argumentos
O local já é usado nos domingos como parque, com atividades de lazer e cultura. A cidade necessita de novas áreas verdes e é possível adaptar a estrutura já construída para ser usada para tal fim, como ocorre com o High Line Park, de Nova York. Abaixo da via, onde a construção escurece a rua, podem-se abrir entradas e usar cores para refletir a luz.
Quem defende a demolição
Movimento Desmonte do Minhocão (formado por moradores, comerciantese arquitetos da região)
Conselho Comunitário de Segurança de Santa Cecília e Ação Local Amaral Gurgel (reúne doze diretores eleitos por moradores do bairro)
Argumentos
A existência do Minhocão desvaloriza imóveis e o comércio da região, e a estrutura de quase cinquenta anos do elevado também está comprometida com infiltrações. Com a vinda de um parque, haverá aumento de barulho e a parte de baixo vai continuar escurecendo as vias, com a presença de moradores de rua e usuários de drogas que já são constantes no local. Os moradores que possuem janelas e varandas a 5 metros de distância do lugar terão sua privacidade comprometida, como já ocorre nos domingos durante os eventos na via.