Marcelo Médici faz comédia dez em um
Na pele de drag queen, bêbado e outros oito personagens, ator se consagra como fenômeno humorístico do momento no teatro paulistano
Na última semana de setembro, o ator paulistano Marcelo Médici, de 39 anos, pegou as chaves de um apartamento localizado no bairro de Higienópolis, próximo à Praça Vilaboim. Com uma garrafa de champanhe na mão, percorreu aliviado os 170 metros quadrados do imóvel vazio. Pela primeira vez, seu nome figurava em uma escritura, aposentando o fantasma da instabilidade econômica que sempre o perseguiu. O pedágio do aluguel, velho conhecido de sua família, virara coisa do passado. No lugar disso, materializava-se ali a compensação por uma carreira de duas décadas.
Enquanto atravessava a sala, os três quartos e os dois banheiros, ele lamentou que a avó e a mãe, já falecidas, não estivessem ali para comemorar. Pelo menos o pai, Genival Franco Alves, de 65 anos, um pernambucano que chegou a São Paulo há cinco décadas e, depois de ter sido garçom e pizzaiolo, detém parte da sociedade de uma cantina no Paraíso, poderia visitá-lo em breve. O misto de emoção e deslumbramento, no entanto, durou pouco. A taça e a bebida foram abandonadas, pois estava na hora de começar o trabalho. Dentro de duas horas, Marcelo Médici desceria três quadras até o Teatro Faap para apresentar um dos maiores fenômenos da temporada, o espetáculo “Eu Era Tudo pra Ela e Ela Me Deixou”, aplaudido em dois meses por mais de 13.000 espectadores, que pagam ingressos de 50 a 70 reais e lotam as 500 poltronas da sala.
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Ele é o ator cômico de maior sucesso nos palcos de São Paulo na atualidade. Vem se saindo tão bem no circuito que optou por deixar de lado nos últimos tempos uma carreira nas novelas da Rede Globo, onde estava despontando no time dos novos talentos. A sucessão de boas bilheterias e o estilo de humor popular, mas sem apelação, o aproximam de figuras como o ator e dramaturgo Juca de Oliveira, que mesmo sem priorizar a televisão se tornou uma grife de qualidade com suas sátiras políticas, atraindo um público dos mais variados perfis, pessoas que nem sempre são frequentadoras habituais de casas de espetáculos. “Cresci vendo meus pais com contas atrasadas, com a luz e o telefone muitas vezes cortados por falta de pagamento. Por isso este momento é tão importante para mim”, afirma Médici.
Durante os 75 minutos de “Eu Era Tudo pra Ela e Ela Me Deixou”, o protagonista se transforma em nove personagens e faz dez caracterizações diferentes, com trocas de roupa que, em alguns casos, consomem apenas inacreditáveis cinco segundos. Encarna uma perua, um velho, um bêbado, um entregador de pizza e uma drag queen, entre outros. Ao seu lado, Ricardo Rathsam interpreta um sujeito abandonado pela mulher em uma peregrinação madrugada afora, cruzando com essas mais diversas criaturas. A plateia vem abaixo em momentos como o da caracterização de um serial killer e o da garota de programa gaúcha com tendências suicidas. “Fiz essa peça por haver um papel perfeito para o Ricardo, como compensação pelas tantas vezes que ele ficou na coxia, pintou os cenários e me ajudou a carregar caixas no teatro”, explica. O sócio e amigo há quinze anos, no entanto, reconhece quem é a estrela ali: “Saber que as pessoas pagam para vê-lo me tranquiliza. Se eu tivesse uma responsabilidade semelhante, ficaria muito tenso em cena”.
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A multiplicidade de tipos não é novidade para o público que o consagrou desde que, praticamente desconhecido, chamou atenção entre o elenco estelar da novela “Belíssima” (2005), de Silvio de Abreu. A empatia do açougueiro gago Fladson resultou em um surpreendente crescimento do personagem na trama. No monólogo “Cada Um com Seus Pobrema”, lançado despretensiosamente em 2004, ele já comprovara versatilidade em outros nove papéis, como os de um mico-leão-dourado gay, um corintiano fanático e da apresentadora infantil Tia Penha. O espetáculo, aplaudido por 200.000 pessoas em seis anos e cujos ingressos costumavam se esgotar com até dois meses de antecedência, voltará a entrar em cartaz no dia 17 de janeiro, em sessões às terças e quartas-feiras no Teatro Shopping Frei Caneca. Com isso, Médici será visto em ação seis dias por semana em 2012, algo raro no teatro de hoje, em que a maioria das montagens só pode ser vista às sextas, sábados e domingos. Depois do recesso de fim de ano, a peça “Eu Era Tudo pra Ela e Ela Me Deixou” retorna à Faap em 6 de janeiro para ficar de quinta-feira a domingo. Na mesma data, o ator comemora 40 anos de idade.
Depois de seis anos de contrato com a Rede Globo, na qual, além de “Belíssima” (2005), participou de “Sete Pecados” (2007) e “Passione” (2010), o artista desligou-se da rotina de gravações. Abriu mão do salário mensal de 12.000 reais — elevado a 18.000 reais quando estava no ar — para se dedicar integralmente ao teatro. “Adoro fazer novelas, afinal foi de tanto vê-las que decidi seguir essa carreira”, diz ele, garantindo que o compromisso não foi renovado de comum acordo com a emissora. “O público enjoa quando sua imagem fica excessivamente em evidência, e eu quero mudar de cara o tempo todo, envelhecer, rejuvenescer, testar os mais diversos papéis.”
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Além dos dividendos artísticos, a mudança tem rendido bons frutos financeiros. Mas Médici começa a gargalhar, como se fizesse parte de sua plateia, quando ouve comentários de que está ficando rico. “O meu pai foi assistir a ‘Cada Um com Seus Pobrema’ no Citibank Hall, que tem 1.400 lugares, e ficou pensando que o dinheiro sobrava todo para mim…”, diverte-se. Além de Ricardo Rathsam, ele tem um terceiro parceiro comercial, o produtor Giuliano Ricca. “Cada Um com Seus Pobrema” já foi apresentado em 22 cidades e não é visto em São Paulo desde fevereiro, quando o ator passou a se dedicar aos ensaios de “Eu Era Tudo pra Ela e Ela Me Deixou”. Os dois espetáculos reúnem um total de catorze pessoas nos bastidores, e uma porcentagem da bilheteria que varia de 20% a 30% vai para os teatros. Descontados o pagamento da equipe e outras despesas, o saldo é dividido igualmente entre o trio de sócios.
Com os ganhos na bilheteria, Médici dá-se ao luxo de rejeitar propostas para apresentar seus personagens em eventos de empresas. “Fico deprimido ao ver que as pessoas ali estão mais preocupadas em beber e não dão a menor bola para meu trabalho”, justifica, mesmo reconhecendo que o dinheiro faria diferença na conta bancária (o valor estimado de seu cachê para essas participações aproxima-se de 20.000 reais). “Ganharia mais nesses trabalhos do que em um fim de semana de peça lotada, mas considero que o desgaste emocional não compensa.”
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Ele está longe de ser um investidor e garante que sua única aplicação é a tradicional caderneta de poupança. “Foi lá que meu dinheiro cresceu nos últimos anos para comprar o apartamento”, diz. Além do imóvel recém-adquirido, seu patrimônio limita-se ao New Beatle 2010 que dirige no dia a dia e a uma moto modelo Piaggio 2009. Mora de aluguel em uma casa no Pacaembu, onde permanecerá até reformar o novo lar (“E isso só vai começar lá por março, quando sobrar uma grana”), e mantém um apartamento alugado no Rio de Janeiro, que virou sua base na cidade enquanto grava por lá.
Seus pais se separaram quando ele tinha 5 anos. Jogadores compulsivos, os dois se conheceram em meio a rodadas de carteado e roleta em cassinos clandestinos. Ela chegou a administrar uma dessas casas de carteado. Sempre curioso, o pequeno Marcelo circulava livre por esses ambientes, e neles já começaria uma espécie de laboratório para a futura profissão. Hoje, ele constata que, ao criar seus tipos, inspira-se naquelas senhoras seriíssimas que colocavam na roda até o patrimônio, nos homens que viravam copos de uísque como se fossem de água, nos homossexuais e casais de amantes que por lá circulavam. “Minha mãe passava dois dias sem aparecer em casa, e quem me deu toda a base foi minha avó”, lembra.
Henriqueta Médici morreu em 1999, aos 66 anos, vitimada por um câncer de mama (em homenagem a ela, Marcelo incorporou o sobrenome à sua assinatura artística). Na mesma época, com grandes dificuldades financeiras, Médici e a avó Dolores chegaram a morar no Capão Redondo, na periferia da Zona Sul. Já atuando como profissional, o jovem fazia milagre com os cachês recebidos e salários inconstantes. “Carreguei muita responsabilidade desde cedo e só comecei a me liberar depois da perda da minha avó, em 2008, quando ela tinha 93 anos.” Mas ele se fecha quando o assunto é sua vida privada. Diz apenas que é um solteiro convicto e que vive só com seus quatro cães da raça maltês: “Não vejo sentido em falar sobre minha intimidade”.
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A independência, aliada a um pouco mais de dinheiro, começou a ser usufruída há pouco tempo. Foi em 2009 que ele carimbou o passaporte pela primeira vez. Transformou-se em criança novamente para brincar nos parques da Disney World e, em seguida, passou dez dias em Nova York. “Viajei em classe executiva e paguei 3.000 dólares para me hospedar no Waldorf-Astoria, um dos hotéis mais chiques de lá. Quando cheguei, não acreditava no tamanho do quarto e corri para ligar para uma amiga”, diverte-se ele, que é mão-aberta não apenas em benefício próprio.
Responsável pela indicação ao primeiro trabalho assalariado de Médici — uma peça infantil vinculada a uma marca de iogurte, apresentada em empresas e escolas, em 1992 —, o ator Wilson de Santos recebeu uma retribuição à altura há dois anos. Na ocasião, o amigo famoso desembolsou 10.000 reais para alavancar a produção da comédia musical “A Noviça Mais Rebelde”, que excursionou pelo Brasil até o mês passado. “Além disso, ele dirigiu o espetáculo inteiro, mas me proibiu de dar o crédito, dizendo que todas as ideias eram minhas e que ele mal tinha marcado presença na sala de ensaios, o que até tem lá seu lado de verdade”, conta Santos, rindo.
Claudia Raia, com quem atuou no musical “Sweet Charity”, em 2006, fala que ele é o colega que toda artista sonha em ter no camarim ao lado. “É um cara que está sempre pronto para te ouvir, muito atencioso e gentil, mesmo que sejam 2 da madrugada”, descreve. A fama — plenamente assumida por ele — de não gostar de passar horas a fio ensaiando não chegou a incomodar a atriz Marília Pêra, que o dirigiu na segunda montagem de “O Mistério de Irma Vap”, em 2008. “Médici é um ótimo profissional. Precisei puxar muito pouco na preparação para chegarmos ao ponto ideal”, afirma ela.
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Na infância, ele também não era muito disciplinado e concentrado nos estudos, a ponto de passar horas em casa agarrado aos livros. “Mas sempre tirei boas notas”, diz. O pai admite que ficou preocupado quando o garoto chegou à adolescência, sem disposição alguma para pegar no pesado. “Queria empregá-lo num restaurante, porque pelo menos ali comida nunca faltaria, mas ele só ficava lá encostado, querendo tomar refrigerante, e depois inventou essa história de artista”, comenta ele, que hoje vibra com orgulho do filho e é o primeiro a revelar que é Marcelo quem paga a escola e dá suporte financeiro ao seu caçula, Guilherme, de 13 anos. “Fico muito emocionado em ver tanta gente elogiando esse rapaz na televisão e no teatro”, afirma. “Só acho que ele deveria parar de fazer esses personagens vestido de mulher.”
FICHA TÉCNICA
O talento múltiplo do ator
■ Nome completo: Marcelo Franco Alves
■ Data de nascimento: 6 de janeiro de 1972 (39 anos)
■ Patrimônio: um apartamento de 170 metros quadrados, um New Beatle 2010 e uma motocicleta Piaggio 2009
■ Estreia na televisão: em 1999, no humorístico “A Praça É Nossa”, do SBT
■ Novelas: “Canavial das Paixões” (2003), no SBT; “Belíssima” (2005), “Sete Pecados” (2007) e “Passione” (2010), na Rede Globo
■ Teatro: mais de trinta peças no currículo. O monólogo “Cada Um com Seus Pobrema” percorreu 22 cidades e foi visto por 200.000 pagantes em seis anos. A remontagem de “O Mistério de Irma Vap” (2008/2009) divertiu 70.000 pessoas em nove meses. Seu sucesso atual, a comédia “Eu Era Tudo pra Ela e Ela Me Deixou”, em cartaz no Teatro Faap desde 17 de setembro, já foi aplaudido por 13.000 espectadores
O QUE DIZEM SOBRE ELE
“Existe uma grande diferença entre o comediante, que pode ou não ser um bom ator, e o verdadeiro ator. Médici, assim como Chico Anysio, é um excelente intérprete, cria personagens com alma.”
Silvio de Abreu, autor das novelas “Belíssima” e “Passione”
“Ele já chega para o ensaio com o personagem pronto na cabeça.”
Cassio Scapin, ator
“Quem o via tão bem naquele papel dramático jamais poderia imaginar que, no futuro, ele se transformaria nesse grande comediante.”
Jorge Takla, que o dirigiu no drama “Seis Graus de Separação” (1993)
“É um cara que chega a ser ingênuo. Pensa que todo mundo está torcendo por ele, e isso nem sempre é verdade no nosso meio.”
Claudia Raia, atriz
“Médici não mudou. As pessoas é que mudaram em relação a ele. Vejo parentes distantes e amigos com os quais nem tinha mais contato o procurando e lhe pedindo dinheiro.”
Ricardo Rathsam, ator