Instituição de mulheres quer construir complexo em área carente do Butantã
A Liga Solidária completa 100 anos e se prepara para começar a atuar fora de São Paulo
Houve um tempo em que, para não serem malvistas, as mulheres de São Paulo não podiam sequer ir a um restaurante sem o marido. Um século atrás, antes dos movimentos pela igualdade de gênero, uma liga feminina surgida na alta sociedade paulistana começava uma luta pelo “empoderamento possível” à época: aprender uma profissão, frequentar cursos variados, cuidar das economias domésticas. Ah, sim: e ter um restaurante só para elas, que funcionou até 1999 embaixo do Viaduto do Chá, no Centro da cidade.
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O nome original não era lá tão revolucionário: Liga das Senhoras Católicas. Elas nunca tiveram laços formais com a Igreja, nem recebiam recursos da cúria. A denominação se deve a dom Duarte Leopoldo e Silva, o primeiro arcebispo de São Paulo. Foi ele quem sugeriu a dona Amália Matarazzo, nora do conde Francesco, que reunisse amigas influentes para tomar chá e organizar ações solidárias. O primeiro encontro, em 10 de março de 1923, está prestes a completar 100 anos. Tal a capacidade de mobilização delas que, em 1924, o grupo já somava 595 voluntárias — quando a cidade não tinha 600 000 pessoas.
As primeiras iniciativas foram os cursos profissionalizantes e de “economia doméstica”: ensinavam desde francês até declamação de texto e confecção de chapéus. Em 1926, abriram o Restaurante para Senhoras, um estabelecimento de preços populares onde as trabalhadoras do Centro podiam almoçar sem constrangimentos. Em 1932, costuraram uniformes para os soldados da Revolução Constitucionalista. E, pelas décadas afora, a Liga foi sempre uma organização presidida por mulheres — via de regra com sobrenomes proeminentes, como Matarazzo e Vidigal. “Dos 1 300 funcionários registrados, 90% são mulheres”, diz a atual mandatária, Rosalu Queiroz (acima).
O antigo nome religioso sumiu em 2016, substituído pela marca Liga Solidária. “Não éramos só católicas, tínhamos protestantes, judias, mulheres sem religião… Mas muita gente não gostou da mudança, algumas até deixaram a instituição”, relembra Maria Luiza D’Orey Espírito Santo (de azul na foto maior), conhecida como dona Xinha, à época presidente da Liga — que tinha como vice Ana Carolina Matarazzo.
Ao completar 100 anos, a organização promete construir um complexo multiúso (inspirado nos Sescs) no bairro Raposo Tavares, um distrito de baixa renda do Butantã. Também se prepara para começar a atuar fora de São Paulo. Por fim, fará uma festa de máscaras no Jockey Club, em 10 de maio. O complexo (projeto ao lado) terá piscina, cinema, cursos e áreas comerciais. A obra deve ter início no segundo semestre — depende apenas da mudança da tipificação da área, ainda considerada uma fazenda.
O projeto, do arquiteto Daniel Corsi, venceu um concurso com sessenta concorrentes e tem custo estimado em 14 milhões de reais. A construção deve levar um ano e meio. “Ainda não definimos o critério de acesso, mas será voltado à população do entorno (cerca de 110 000 pessoas) e provavelmente feito por meio de uma carteirinha”, diz Rosalu. Outra novidade é que, pela primeira vez, a Liga Solidária vai sair de São Paulo. Em dezembro, ela recebeu uma doação de 2,5 milhões de reais do BNDES para levar seu modelo a instituições sociais do Norte e Nordeste do Brasil.
A Liga, uma entidade sem fins lucrativos, faz a gestão de uma série de colégios e creches públicos, além de manter “negócios filantrópicos”, como o Lar Sant’Ana, no Alto de Pinheiros, uma casa para idosos — com mensalidade de 15 000 reais. Dessa forma, sustenta diversos equipamentos sociais.
Em 2022, teve um orçamento de 132 milhões de reais. Parte do resultado está, por exemplo, na virada de vida de Alessandra Santos (ao lado), moradora do Jardim do Lago. Após uma depressão na pandemia, ela abriu a MajuCakes, fruto das aulas de culinária e empreendedorismo na Liga — onde os filhos estudam. “Outro dia, ensinei filhas e netas da dona Lucinha (Maria Lúcia Whitaker Vidigal, ex-presidente da Liga) a fazer brigadeiro brûlé e cuscuz marroquino”, diz. “Elas adoraram.”
Publicado em VEJA São Paulo de 08 de março de 2023, edição nº 2831
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