João de Deus: o médium do povo (e dos poderosos)
Líder espiritual de personalidades como Dilma Rousseff, Lula, Paulo Skaf e Xuxa, ele atrai toda semana 5 000 pessoas a Abadiânia, em Goiás
Cerca de 5 000 visitantes munidos de esperança visitam semanalmente Abadiânia, cidade de 14 000 habitantes dividida ao meio pela BR-060, rodovia que liga Goiânia a Brasília. Essa leva de gente vestida de branco vinda do mundo todo chega ali com um único objetivo: receber algum alento espiritual do médium João Teixeira de Faria, o João de Deus, ou John of God, para os estrangeiros. Com fama de curandeiro e uma carteira de pacientes estrelados, que vai de políticos a celebridades, o homem de 1,80 metro, dentes de porcelana e adornado por cordão de ouro e anel de esmeralda só aparece diante da multidão incorporando um dos trinta médicos que contabiliza receber. Todos esses espíritos teriam uma única missão, a de tratar doenças como câncer, esclerose, cegueira, depressão, entre tantas outras. “Não sou eu quem curo nas cirurgias que as entidades fazem, mas Deus. Sou um instrumento Dele”, diz o paranormal, de 72 anos.
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Para entrevistá-lo, não bastou a combinação anterior com o seu assessor Chico Lobo, ex-vice-prefeito da cidade. Precisei, junto com o fotógrafo e o cinegrafista, entrar na fila de cirurgias espirituais para obter a autorização. Nesse local, chamado de Sala da Entidade, cerca de 300 pessoas permanecem sentadas em silêncio e de olhos fechados (só João de Deus e seus auxiliares podem ficar de olhos abertos). O objetivo é energizar o ambiente pelo qual centenas de pessoas vão passar para fazer o tratamento. Tomado por uma entidade, João de Deus deu seu aval para seguirmos em frente. Em Abadiânia, é assim. João de Deus é quem manda, estando ou não incorporado. Ele é uma espécie de xerife. É comum os moradores se aconselharem antes de comprar um carro, fechar um negócio ou até pedir a mão de alguém em casamento. Tudo gira em torno do homem semianalfabeto, de gênio forte e uma generosidade proporcional ao seu poder local.
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Pelo menos cinco caravanas de ônibus saem de São Paulo todo mês com destino à Casa Dom Inácio de Loyola, como o centro foi batizado, em 1976, quando surgiu. Passam por ali cerca de 260 000 pessoas por ano, sendo pelo menos 20% paulistas, que em sua grande maioria chegam de avião pelos aeroportos de Brasília e Goiânia. Dessas cidades, tomam um táxi até Abadiânia, em um percurso que leva pouco mais de uma hora. Os muito ricos descem em jatos particulares ou fretados no aeroporto de Anápolis, a vinte minutos de carro. Os visitantes ficam em uma das 62 pousadas criadas exclusivamente para recebê-los. A sensação é de estar hospedado em um hospital. Todas elas são extremamente simples e têm seu cardápio adaptado às regras de João de Deus — nada de pimentas, ovos caipiras nem bebidas alcoólicas.
Ficar nesses hotéis faz parte do tratamento, que inclui repouso de 24 horas após a cirurgia espiritual, com ou sem corte, as duas modalidades praticadas ali. As mais impressionantes são aquelas em que uma tesoura é inserida dentro dos orifícios do nariz até chegar perto da testa. Também há as feitas com bisturi na região das costas e abaixo do peito. O sangue escorre do corpo dos pacientes até o chão. De todas as cirurgias que presenciei nos quatro dias em Abadiânia, a que mais me chocou foi a de raspagem da córnea com uma faca simples. Nenhum paciente se submete à anestesia, e todos disseram não sentir dor durante os procedimentos. Nessas ocasiões, João de Deus me chamava para acompanhar de perto a sua performance e perguntava: “Isso vai te ajudar na reportagem?”.
+ VÍDEO: Conheça onde os pacientes de João de Deus são atendidos
Os cortes são fechados ali mesmo por pequenos pontos feitos por ele. As cirurgias duram um minuto. Tudo muito rápido entre o abrir e o fechar. “Em geral, João de Deus não tira material patológico dos pacientes”, afirma o médico psiquiatra Alexander Moreira de Almeida, fundador do Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde do Hospital das Clínicas. As cirurgias se repetem da mesma maneira, não importa se a pessoa sofre de câncer, esclerose ou depressão. Almeida fez um trabalho com João de Deus para conhecer os seus métodos. “As cirurgias são verídicas, mas não podemos nos esquecer de que elas também servem para impressionar a audiência.” Mesmo quando os tratamentos espirituais têm longa duração — variam de dois meses a anos —, João de Deus pede a seus pacientes que não abandonem as terapias convencionais, com o uso de drogas alopáticas receitadas por médicos.“Ele é um homem que fortalece a fé e a esperança daqueles que estão em tratamento”, avalia o oncologista Sergio Simon, do Hospital Albert Einstein. “Cerca de 60% dos meus pacientes procuram terapias alternativas durante a químio e a radioterapia.”
Dentro do complexo de Abadiânia há uma lojinha de cristais, outra de livros e DVDs espíritas e uma lanchonete administrada por Sandro, um dos nove filhos de João de Deus. O hit das prateleiras é uma água que seria fluidificada, ou seja, energizada pelo médium. O litro desse líquido, ingerido pela presidente Dilma Rousseff durante seu tratamento contra um câncer no sistema linfático, em 2008, custa 3 reais e é indicado para praticamente todos os que estão ali. “Compro 200 litros sempre que venho”, afirma o empresário Raphael Levy, dono da marca de surfe Fico. Ele contrata uma transportadora para carregar a água até São Paulo. “Ela me faz bem e gosto de distribuir aos amigos.” O ponto mais concorrido do centro, no entanto, é a farmácia, na qual são fabricados e comercializados os “remédios” de passiflora, feitos da planta do maracujá. Cada recipiente com 180 cápsulas custa 50 reais — para algumas pessoas, a receita dada pela entidade vem acompanhada de um “gratuito”.
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É inegável até para os mais céticos que o médium exerce um magnetismo em boa parte das pessoas que se aproximam dele. Conheci um casal de aposentados que deixou o apartamento de Moema em janeiro para viver ali. Há dois anos, Juvenal e Sônia Capatto iniciaram o tratamento de uma doença na pele da neta, Isabella, hoje com 6 anos. “Ela tinha inúmeras feridas, o que a restringia de fazer coisas simples, como brincar no quintal”, conta o avô, de 73 anos. “Hoje, a pele dela está quase curada.” Diante do feito, eles decidiram trabalhar como voluntários no centro de João de Deus, participando de todas as correntes de meditação. São muitas as histórias assim.
A artista plástica Eugênia Lima, moradora do Real Parque, também planeja se mudar para lá. “Eu pensava em morar em Miami até por questão de segurança, mas mudei de ideia e quero viver aqui”, diz. “Posso ajudar alavar os pratos na cozinha, ser voluntária de alguma forma.” Há pessoas que optam por ajudar a descascar e preparar os ingredientes das 600 sopas servidas de graça todos os dias à população carente da cidade.
Quando João de Deus nasceu, na pequena cidade de Cachoeira da Fumaça, foi educado em uma casa simples e de origem católica. Na infância, começou a trabalhar como alfaiate na oficina de costura do pai. Aos 9 anos, conta ter tido sua primeira premonição: um temporal de fortes proporções iria devastar dezenas de casas em Nova Ponte, cidade da região. Isso de fato teria acontecido. Outras premonições foram se seguindo, até que na adolescência ele procurou um centro espírita e foi orientado a usar seu poder para a cura das pessoas. Este seria o seu “chamado”. Chegou a ser perseguido por líderes religiosos e fazia atendimento em estados como Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais. Também trabalhou como alfaiate do Exército, sem deixar os trabalhos de curandeiro de lado. Conseguiu, assim, o apoio dos militares e passou a viajar pelo Brasil, atuando como médium sem ser incomodado.
Sua fama mundial chegou em 1991, quando a atriz americana Shirley MacLaine se tratou com ele de um câncer na região abdominal. Hoje, o lugar recebe muitos turistas estrangeiros, vindos de países como Índia, Austrália, Alemanha e Estados Unidos. Há duas semanas, o cantor Paul Simon esteve lá. Segundo relatos de funcionários, a apresentadora Oprah Winfrey chorou feito criança durante o encontro com o médium, em 2012. “Para mim, não existe distinção entre pobre e rico. Atendo todo mundo igual”, afirma João de Deus.
Mais de uma vez por mês, ele vem a São Paulo para visitar pacientes que estão em hospitais como Sírio-Libanês e Albert Einstein. Durante o tratamento do câncer de laringe, em 2011, o ex-presidente Lula recebeu o médium no hospital e também em seu apartamento, em São Bernardo do Campo. Muitos pacientes mandam buscar João de Deus em jato particular. “Quando vou a São Paulo, aproveito para fazer atividades com os amigos”, conta o médium. Um dos mais próximos é Paulo Skaf, candidato ao governo do estado. “O Skaf para tudo o que está fazendo para me preparar um churrasco como eu gosto: com carne bem passada.” O publicitário Nizan Guanaes também faz parte do círculo de amigos de João. “Eu visitei Abadiânia duas vezes neste ano”, conta. “O lugar tem uma energia especial. Ele nos faz recarregar a bateria para a vida.” Nizan também o recebe em sua casa, no Jardim Europa. “O João comove as pessoas, atrai a atenção por onde passa. É um superstar religioso.”
João de Deus não cobra por seus tratamentos, mas não vira as costas a doações. Em Abadiânia, ele tem 28 casas em seu nome. Adquiriu ainda nove propriedades em Anápolis, de 2008 para cá. João tem fazendas de mineração de ouro e de criação de gado. Suas vaidades, segundo ele, são os “carrões”. No dia a dia, dirige (acompanhado por um segurança) um Sorento, da Kia. Também é dono de um avião Seneca II, prefixo PT-RCC. Uma das doações recentes o deixou especialmente feliz. Trata-se de um terreno de 2 500 metros quadrados, em Jundiaí, onde ele vai levantar uma filial da Casa Dom Inácio de Loyola. “Meu sonho é construir esse lugar em São Paulo. Isso deve acontecer num futuro próximo”, diz, fazendo mistério.
Hipertenso, o médium colocou seis stents em artérias do coração no ano passado. O pavio curto continuou curto mesmo depois do susto. Ele discute com os funcionários e parentes sem preocupação de ser rude. Brigou, por exemplo, com uma funcionária porque o porta-retratos dele ao lado da atriz Cissa Guimarães não estava na sala quando quis mostrá-lo a um amigo. Dez minutos depois, discutiu com o filho Sandro porque achou a lanchonete desorganizada. Só após tomar remédios para baixar a pressão e um calmante seu estado de espírito ficou mais leve. “O João é matuto, então, bate para poder se defender. Não é nada pessoal”, diz o assessor Chico Lobo. Deixei o centro com poucas certezas, mas com um desejo: não precisar retornar a Abadiânia, principalmente após as repetidas “previsões” de João de Deus, meio em tom de autoajuda, meio em tom de ameaça: “Veja lá o que vai escrever. Você ainda vai voltar aqui para tratar de um parente muito próximo”.
Cirurgias, esmeraldas e nove filhos
Nome: João Teixeira de Faria, o João de Deus.
Idade: 72 anos.
Estado civil: casado com sua décima mulher, a advogada Ana Keyla Teixeira Lourenço, quarenta anos mais jovem.
Filhos: nove. Nenhum deles com a mulher atual.
Natural de: Cachoeira da Fumaça, interior de Goiás.
Onde atende: instalou-se há 38 anos em Abadiânia, a 87 quilômetros de Goiânia.
Atendimentos: 5 000 pessoas por semana.
Mundo afora: já viajou a trabalho para mais de dez países.
Funcionários no centro: quarenta registrados em carteira e 200 voluntários.
Meios de transporte: diz gostar de “carrões”. O modelo do dia a dia é um Sorento, da Kia. Também é dono de um avião Seneca II de seis lugares.
Holerite: ele tem fazendas de garimpo de ouro, criação de gado e cultivo de soja. Só em Abadiânia, 28 imóveis estão em seu nome.
Precaução: não sai de casa sem seu segurança particular.
Vaidades: “Vou tirar a papada e implantar cabelos”, diz ele, que nega ter aplicado Botox ou feito cirurgia plástica, apesar do rosto esticado.
Acessórios: usa um grosso cordão de ouro e um anel de esmeralda bastante chamativo.
Check-up: pôs seis stents no ano passado com o médico Roberto Kalil Filho, do Sírio-Libanês. Além disso, toma remédios para hipertensão e tranquilizantes.
Manias: briga com funcionários quando vê o chão sem estar impecável ou um móvel fora do lugar.
Filiação partidária: pertenceu ao extinto PFL. Hoje diz não fazer parte de nenhum.
Medo: embora diga ter contato com o transcendental, tem medo de morrer. “É algo que todos temem.”
João de Deus por João de Deus
“Não sou eu quem curo as doenças nas cirurgias que as entidades fazem, mas Deus. Sou um instrumento Dele”
“Trato o Lula, o Paulo Skaf e o Nizan Guanaes da mesma forma. Quando pessoas famosas me visitam aqui, elas se misturam com todo mundo”
“Quando não estou trabalhando, gosto de ver novela, de dançar e de escutar música sertaneja”
“Só por que eu sou médium tenho de andar descalço? Não. Ando descalço porque gosto, mas, se quiser, tenho cinquenta pares de sapatos”
“Não cobro um centavo pelos tratamentos e cirurgias.Agora, se alguém quiser doar algo, aceito — mas não peço”
“Gosto de carrões e de joias, pois tenho garimpo de ouro”