Faz noventa anos que um livro de contos magro, com apenas onze histórias, retrato nítido de uma população estrangeira que crescia na cidade década após década, dona de uma sonoridade inconfundível nas falas jogadas ao vento em tom elevado e de um comportamento francamente comunicativo, em contraste com o jeito macambúzio dos naturais da terra, gente que era vista por estes com preconceito — faz noventa anos, eu dizia, que tal livro fez sucesso e continua a ser um esplêndido retrato de época da vida urbana de São Paulo. Falo do livro de Antônio de Alcântara Machado Brás, Bexiga e Barra Funda, nomes de três dos bairros ocupados pelos “carcamanos”, como eram chamados pejorativamente na cidade os imigrantes italianos e seus descendentes: o Brás dos napolitanos, o Bexiga dos calabreses e a Barra Funda dos vênetos.
— Cala a boca, palestrino! — gritou o Beppino para o Gaetaninho, na Rua Oriente, antes de este correr para pegar a bola e ser atropelado pelo bonde. “Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro”, diz o narrador do conto “Gaetaninho”, do livro de 1927. Noventa anos depois, é enorme, infernal, o burburinho de automóveis, de compradores e vendedores de confecções, que toma as transversais e paralelas da Oriente. Coreanos, chineses, árabes, armênios e gregos, que vieram depois dos italianos, já rareiam; a massa é de nordestinos, nos balcões, nas carrocinhas de picolé, nos isopores de água e refrigerantes, nas casas de comidas, no comércio ambulante. Os italianos, para onde foram? Não aguentaram a bagunça, mudaram-se para outros bairros, espalharam-se.
De portões abertos para a Oriente ainda resta um ou outro beco dos tempos de Gaetaninho. De um deles, ecoava todas as manhãs a voz de tia Filomena cantando “Ahi Mari, ahi Mari!”, que acordava Gaetaninho do sonho diário de andar de automóvel, na boleia. Das casas da região vêm hoje outros sons: “Tá de olho na marquinha da calcinha dela”.
Gaetaninho e seus patrícios de maioria napolitana viviam naquele Brás do Teatro Colombo, dos armazéns, das cantinas, do cinema Ideal, da Confeitaria Guarani, da Sociedade Príncipe Humberto, das fábricas, da capela antiga da Signora di Casaluce que o metrô derrubou…
Naquele Brás onde Nicolino Fior d’Amore apunhalou Grazia, a desgraçada, enquanto “as chaminés das fábricas apitavam na Rua Brigadeiro Machado”, segundo conta Alcântara Machado. Rua que um dia virou ponto de reunião de cantadores e repentistas do Nordeste, na Casa do Conterrâneo. Dali até a estação de trem não se achavam mais o olio de Luca, a sardela, o salame, mas o dendê, a buchada e o sarapatel.
No mesmo Brás de Tranquillo Zampinetti, personagem barbeiro que Antônio de Alcântara Machado botou morando e trabalhando na Rua do Gasômetro, 224-B, e que não queria ser brasileiro, queria só juntar um bom dinheiro e voltar para a pátria. Recusava-se até a votar, “Perché sono italiano, mio caro signore”, mas depois que subiu na vida, já proprietário de muitos imóveis, dizia:
“— Do que a gente bisogna no Brasil, bisogna mesmo, é d’un buono governo, mais nada!”
Noventa anos depois, o Brasil continua precisando, caro signore Zampinetti, e muito.
O menino Gaetaninho, fã de futebol, torcedor do Palestra, craque no driblar a mãe e o chinelo, não conseguiu driblar o bonde, e o conto termina com ele fazendo sua primeira e última viagem de automóvel: “Não ia na boleia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima”. Mudou-se para o Araçá.