Heliópolis sofre com efeitos da Covid e quer atrair parceria com empresas
Favela tem mais violência e baixa na renda; Cleide Alves, líder dos moradores, administra 3 milhões por mês em 52 projetos e busca novas fontes de renda
O coronavírus atingiu em cheio a rotina de Heliópolis, a segunda maior favela de São Paulo, com 624.000 metros quadrados (Paraisópolis é a primeira, com cerca de 800.000). Não só pelos 138 casos e 24 óbitos confirmados até meados de maio, mas pelos efeitos econômicos e sociais que a pandemia provocou em seus 41.118 habitantes segundo o Censo 2010, dado oficial mais recente disponível. Em Heliópolis, que possui 6.000 comércios, de cada dez famílias, seis ganham até dois salários mínimos mensais. Dessas, 26% ficaram sem renda alguma, segundo pesquisa feita pelo coletivo De Olho na Quebrada, com 514 moradores de Heliópolis. No geral, todos sofreram os impactos diretos e indiretos da retração econômica e das medidas de corte de salários. Quem também sofreu uma guinada de 180 graus no seu dia a dia foi a líder comunitária Antonia Cleide Alves, 56, presidente da União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (Unas), a maior entidade do pedaço. Sem poder abrir a maioria dos 52 projetos que administra na favela e no entorno, Cleide (e seus 620 funcionários contratados com carteira assinada) passou a atuar na coleta e distribuição de máscaras e cestas básicas.
Se fosse uma empresa, a Unas estaria caracterizada como uma firma de porte médio. Com faturamento mensal de 3 milhões de reais, todo ele recebido de parcerias com a prefeitura (a grande maioria) e com o governo do estado (apenas um), beneficia 10.000 pessoas, das quais cerca de 40% são crianças e jovens. No fim das contas, são 300 reais mensais por indivíduo. Ao todo, a associação, que se responsabiliza por mais de 5.000 almoços (fora as outras refeições) por dia, toca dezesseis creches, onze centros para criança e adolescente (CCAs, que recebem alunos no contraturno da escola), uma rádio, uma biblioteca e um centro do idoso, entre muitas outras. É difícil haver uma rua sem que exista um equipamento público administrado ou apoiado pela Unas. “O dinheiro é carimbado e chega entre os dias 1º e 2 de cada mês — 80% dele vai para o pagamento de salários”, diz Cleide. “Lá pelo dia 15 a verba acaba, e precisamos correr atrás de ajuda para fechar as contas.”
A busca por novas fontes de receita em Heliópolis visa a espelhar projetos privados que ocorrem em outra favela, Paraisópolis, que recebe mais de quarenta ações sociais bancadas por empresas privadas. Ali, as companhias engajadas em obras filantrópicas aportam cerca de 17 milhões de reais por ano. “Passou da hora de os empresários olharem para além do Morumbi. Eles observam Paraisópolis pela janela dos seus condomínios de luxo, mas bem que podiam ver a gente aqui também. Merecemos a mesma visibilidade que eles possuem. Teria sido a novela que levou tanto empresário para lá?”, questiona a Cleide, citando o folhetim global I love Paraisópolis, no ar em 2015.
A história da segunda maior favela de São Paulo começou há quase cinquenta anos, quando, em 1971, 120 famílias foram despejadas de outras duas ocupações. A princípio era para ser uma situação provisória, mas o local, em um terreno que pertencia ao Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social (Iapas, hoje INSS), foi crescendo e recebendo famílias do Norte e Nordeste. “Não tinha água nem asfalto. Demorou quatro anos para construirmos um banheiro dentro de casa”, recorda-se Cleide Alves. Ela chegou na época com o pai (já falecido), a mãe e mais quatro irmãos, vindos de Mato Grosso, após deixar sua terra natal, Ibicuã, no Ceará. Com exceção de um deles, que se casou e foi morar em Diadema, o restante da família permanece em Heliópolis. Casada e mãe de dois filhos, Cleide começou a trabalhar aos 9 anos como empregada doméstica, em um bairro vizinho. Aos 18 passou a participar de grupos de movimentos de moradia, que deram origem à Unas. O posto atual na entidade foi conquistado há sete anos. Seu segundo mandato vence em 2021 e ela poderá concorrer à própria sucessão.
Até lá, Cleide precisa cuidar de assuntos mais emergenciais, como a dura realidade provocada pelo coronavírus em Heliópolis. Ao mesmo tempo que o desemprego atinge abruptamente a população, já vulnerável historicamente, os casos de violência doméstica aumentaram significativamente. “Além das agressões físicas, os abusos psicológicos e outros tipos de violência cresceram a passos largos”, diz a assistente social Patrícia de Araújo, que atua desde 2013 na região. Uma dessas modalidades de crime, muitas vezes silenciosa, é a chamada violência patrimonial, que ocorre quando a mulher, com emprego e renda, tem bens (pode ser um celular ou um carro) tomados pelo namorado ou marido, mesmo que de forma consentida. “Muitas mulheres entram apaixonadas na relação e financiam veículo, dão cartão de crédito. Nesses casos, elas sempre saem mais empobrecidas da relação.”
Outro tipo de violência que cresceu de março para cá foi contra as crianças. Desde então, duas mortes foram registradas, uma de um menino de 8 anos enforcado com uma toalha e outra de uma bebê de 4 meses agredida em casa pelos pais. “Antes, os casos de violência se resumiam a dez por mês. Agora, atendo a seis por semana”, afirma a pedagoga Mariana Maria da Silva, 33, membro do conselho tutelar local. Na última semana, ela recebeu na sede do órgão uma jovem de 22 anos que queria entregar para adoção sua filha de 5 anos. O caso gerou uma comoção entre os funcionários do espaço. Vejinha conversou com a mulher, que precisou sair de Heliópolis recentemente após sua tia ter se mudado para outra cidade. Ela não será identificada. “Moro em Taipas (extremo Norte da cidade) em uma casa que só tem uma cama, mais nada. Eu deixava a minha filha com uma senhora, mas ela contraiu coronavírus. A saída foi deixar com minha avó, que mora perto, mas ela tem problemas mentais e bate na criança. Na segunda-feira (15), um vizinho me ligou falando que minha filha estava na rua, sozinha. Quando cheguei lá, o rosto dela estava todo roxo. Trabalho perto de Heliópolis e não tenho com quem deixá-la. Prefiro entregar para adoção a vê-la nessa situação”, diz a mulher, que ganha 900 reais por mês em um restaurante e paga 600 reais de aluguel. Seu salário foi reduzido em 25% após a pandemia.
Apesar do susto, o caso está no caminho de um final feliz. “Conseguimos achar uma casa por 400 reais aqui em Heliópolis e vamos encontrar alguém que possa ficar com a menina inicialmente”, comemora Mariana. O dinheiro do primeiro aluguel foi garantido por um doador e o desafio agora é encontrar novos donativos para a jovem mobiliar a residência, que possui um fogão. Uma máquina de lavar-roupa, dois colchões e roupas de cama também foram conseguidos. “Vou trabalhar perto de casa e resolver a minha vida”, comemora a menina, cuja mãe mora no Ceará e não respondeu às ligações do conselho tutelar para que ela pudesse ficar com a neta temporariamente.
Nem só de histórias tristes vive Heliópolis. Exemplos de superação e de reinvenção são relativamente comuns. Educador social de 22 anos, o produtor artístico Igor da Conceição montou em seu quarto um estúdio de áudio e vídeo. A cabine de voz, com apenas 1 metro quadrado, não permite mais do que uma pessoa gravando ao mesmo tempo. Sua especialidade é criar batidas de rap. Para não atormentar os vizinhos e melhorar a qualidade do som, ele instalou piso de borracha e espumas na parede. “Gravo quinze músicas por mês”, afirma o rapaz, que cobra 150 reais pela produção total, que inclui captação de voz, edição e mixagem. Antes da pandemia, Igor pretendia dar saltos mais altos e alugar um espaço maior, mas a quarentena freou as expectativas na mesma velocidade com que os candidatos a rapper de Heliópolis ficaram sem dinheiro para pagar pelas empreitadas musicais.
Ainda no campo da arte, outro grupo que viu seu trabalho ser interrompido pela pandemia foi o Instituto Baccarelli. “A música é algo que se faz presencialmente”, lamenta Edilson Ventureli, diretor executivo e maestro do projeto. A organização leva ensino musical para 1.300 jovens há 22 anos e foi idealizada pelo maestro Sílvio Baccarelli, morto em 2019. Ele se solidarizou com a região após um incêndio que deixou quatro mortos, em 1996, incluindo duas crianças, e iniciou o projeto. Hoje aos 56 anos, Ventureli trabalhou ao lado do mestre desde os seus 13 anos de idade e viu o instituto nascer e crescer. “Nosso projeto pedagógico começa com musicalização infantil para crianças de 4 a 6 anos de idade.” A instituição, que paralisou as operações por causa da Covid-19, conta com quatro orquestras, sendo a Sinfônica Heliópolis a de maior renome. Entre os alunos que sentem falta da rotina do instituto, Mariana Merzbahcer, 17, precisa treinar sozinha o contrabaixo em casa. Membro da Orquestra Juvenil Heliópolis, ela dividia a semana entre a escola e as aulas no Baccarelli. “Ia quase todo dia: faço coral, tenho aula de contrabaixo, tem a orquestra e a aula teórica. Era bem puxado, mas eu adorava.”
Em abril, a presidente da Unas viu o Centro Educacional Unificado (CEU) demitir sete educadores ligados à associação e protestou contra a decisão, da Secretaria Municipal da Educação. “Foi um desmonte, as pessoas que saíram estavam atuando no combate ao coronavírus. No lugar entrou gente que não tem histórico com a comunidade”, diz Cleide. Procurada, a prefeitura afirma que as nomeações seguem rigor técnico e são prerrogativas do Executivo.
Ao longo dos anos, as demandas de Heliópolis foram aumentando, à medida que os temores de reintegração de posse atormentavam os habitantes. Uma delas em 1993, pedida pela Cohab municipal depois que o terreno foi transferido para a prefeitura, acabou em conflito com a polícia. Em abril de 2019, a Vejinha mostrou a nova realidade do local (e de outros lugares na metrópole), com a verticalização das casas na reportagem “A multiplicação das lajes”. Catorze meses depois, várias construções e pequenos prédios estão sendo erguidos onde antes existiam minúsculas casas amontoadas e sobrepostas. Enquanto isso, apesar das recomendações de isolamento social, a vida segue normal em Heliópolis. São bares, botecos, adegas, mercados, lojas abertos e recebendo grande público, que não tem opções de lazer (o maior deles é o famoso pancadão, que atormenta quem tenta dormir aos fins de semana) e que dispõe de apenas uma linha de ônibus no centro da favela. Unitário também é o campo de futebol, que abrigava antes da pandemia mais de vinte times de várzea. A bola por ali parou de rolar. Outro símbolo esférico do pedaço, os “redondinhos de Heliópolis”, conjunto habitacional projetado por Ruy Ohtake, parou no meio do caminho. Dos 71 edifícios prometidos pela prefeitura, menos da metade foi entregue.
+Assine a Vejinha a partir de 6,90
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 24 de junho de 2020, edição nº 2692.