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Expo Favela vira vitrine para empreendimentos das comunidades

Megaevento vai reunir 300 negócios inovadores de bairros periféricos em complexo de luxo da Zona Sul a partir do próximo dia 17

Por Clayton Freitas
Atualizado em 10 mar 2023, 16h03 - Publicado em 10 mar 2023, 06h00

O WTC Events Center, espaço que já serviu de locação para programas de TV e é uma das estruturas mais concorridas para a realização de encontros corporativos na porção abastada da Zona Sul, se transformará em um centro de negócios para empreendedores de periferias entre os dias 17 e 19 de março, quando acontece a Expo Favela São Paulo 2023. O megaevento, que ajuda a impulsionar iniciativas como as das páginas a seguir, apresentadas na última edição, inclui uma extensa programação, com direito a palestras, workshops, rodadas de negócios em que empreendedores tentam captar investimento, apresentação de startups, shows e até um baile de favela. A lista de personalidades que irão participar inclui de ex- BBBs como Thelminha e Babu Santana aos ministros do governo Lula Silvio Almeida (Direitos Humanos) e Margareth Menezes (Cultura), passando pelos apresentadores de TV Amaury Júnior e Luciano Huck, e empresários como Abilio Diniz. Serão 300 expositores, com uma expectativa de público de 15 000 pessoas por dia.

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Criador do evento, Celso Athayde, 60 anos, ex-coordenador da Cufa (Central Única das Favelas) e fundador da Favela Holding, que reúne empresas que atuam no desenvolvimento das comunidades, afirma que a Expo Favela foi concebida para aumentar a conexão dos empreendedores da favela com o asfalto, que é como ele denomina aqueles que não moram nas comunidades. Essa mescla é refletida na programação. Um dos encontros será o de Abilio Diniz com o produtor e empresário Konrad Dantas, o KondZilla. (confira destaques ao final do texto). “Quando fui para o Fórum Econômico Mundial (em junho de 2022), eu percebi que era o primeiro favelado a ganhar um prêmio de empreendedor de impacto e inovação (a premiação foi concedida pela Fundação Schwab). E isso não pode ser um monopólio do bem, pre- cisa ser compartilhado”, afirma Athayde. Uma das frases de efeito mais usadas por ele é a de que a favela não é carência, mas sim potência. Dados do Data Favela, instituto de pesquisa especializado nessa população, indicam que, dos 17 milhões de pessoas vivendo em favelas do país, 3,4 milhões estão no estado de São Paulo, com um potencial de consumo que chega a 41 bilhões de reais por ano.

Para explorar todo esse potencial e mostrar as boas ideias nascidas nas comunidades, a feira de negócios foi realizada pela primeira vez no ano passado na capital paulista, mas com caráter nacional, reunindo ideias de empreendedores de favelas de todo o Brasil. Dos mais de 20 000 interessados em apresentar suas ideias, 300 puderam mostrar os seus projetos, de alimentação à tecnologia. Destes, dez foram selecionados para participar de um reality show. O vencedor, que ganhou um prêmio de 80 000 reais, foi o aplicativo Todos por Uma, desenvolvido por Mateus Lima, de 24 anos. Trata-se de uma ferramenta que permite às mulheres vítimas de agressão pedir socorro e avisar os contatos cadastrados. O jovem nascido numa área pobre de Cumbica, em Guarulhos, na Grande São Paulo, agora sobrevive da ideia que criou, transformando-a em uma startup. “Por meio dos aportes (de investidores) consigo me manter”, afirma. (leia mais abaixo).

Os amigos Diogo Bezerra, de 30 anos, e Tauan Souza Matos, de 29, do Jardim Pantanal, na Zona Leste, são outros jovens da periferia que tiveram uma ideia inovadora e seu negócio impulsionado na participação da Expo Favela. Criaram uma escola que ensina programação utilizando a linguagem usada pelos jovens da periferia. Em outro caso, depois de receber 200 000 reais de aporte do Shark Tank Brasil, Diego Ramos, de 28 anos, vendeu a sua parte na escola de inglês que abriu e decidiu criar a Somar Skateboard’s, voltada a fo- mentar talentos do skate da periferia para que consigam gerar renda com trabalhos relacionados ao esporte. Já Silvana Bento, de 46 anos, deixou dois empregos na área da saúde para vender calcinhas para mulheres trans, que ela mesma criou sem sequer saber pregar um botão. Hoje a marca tem, entre as clientes, Liniker e Linn da Quebrada, e é o sustento de toda a família. “Os empreendedores de favelas não querem cesta básica. Querem trabalhar, ganhar o seu próprio dinheiro e comprar o que quiserem”, diz Celso Athayde.

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Estudioso dos hábitos de consumo das favelas há mais de vinte anos, Renato Meirelles, fundador do Data Favela e colunista de VEJA, faz coro à voz do criador da Expo Favela. “Muitos profissionais (das favelas) não conseguem ganhar mais do que um ou dois salários mínimos. E o empreendedorismo das favelas vem daí, de não querer bater cartão e da necessidade de ampliar os rendimentos e transformar os seus sonhos em realidade.”

Meirelles explica que o conceito de inovação das favelas não está relacionado a novas tecnologias, tal como é a percepção do senso comum. Ele cita como exemplo os serviços de entrega, como o Favela Llog (leia mais abaixo), que colocaram os moradores de favelas na rota das compras de comércio on-line. “É uma inovação prática, uma tecnologia social própria, que é fundamental tanto para a sobrevivência econômica quanto para as empresas”, diz. Questionado a respeito da sobrevivência desses negócios, ele afirma que o empreendedor da favela passa pelas mesmas dificuldades daqueles “do asfalto”, porém, possui algumas características que o diferenciam. “A primeira é a resiliência de continuar insistindo e não desistir. E a outra é “sevirômetro” (neologismo para capacidade de se virar em situa-ções difíceis), já que eles têm desafios constantes”, diz.

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Na abertura do evento, no dia 17, Meirelles apresentará a Data Favela 2023, o mais amplo estudo sobre as favelas brasileiras. Entre as tendências detectadas, está a retomada do sonho de cursar uma universidade. Outra é uma maior intenção de ter um negócio próprio, que chegou a 76% em 2022, explicada pelo maior otimismo em rela- ção à economia e à participação feminina. “Estamos vindo de um período de pandemia em que muitas delas acabaram botando o marido para fora de casa. E elas acreditam numa autonomia financeira”, diz Meirelles. Um dado curioso é que a maior parte dos que abriram um novo negócio (54%) o fez pela oportunidade, e não pela necessidade de gerar renda para se manter.

Toda essa expectativa em torno de os empreendedores mostrarem o seu próprio negócio para potenciais investidores levou os organizadores a agigantarem o evento já em sua segunda edição. Neste ano, em vez de um único evento, a Expo Favela terá edições regionais em mais de vinte capitais. A primeira em São Paulo, com investimento previsto de 7 milhões de reais na organização. Os melhores trabalhos de cada uma dessas regionais serão avaliados novamente em uma etapa nacional, prevista para acontecer no fim deste ano, em São Paulo.

Conheça alguns empreendedores da favela abaixo

Expansão: cinco novas bases em abril
Expansão: cinco novas bases em abril (MARCELA NOVAIS/Divulgação)

Favela Llog emprega ex-detentos

O Favela Llog, serviço de entrega de produtos para moradores de comunidades, dá oportuni- dade para que ex-egressos do sistema prisional trabalhem no negócio e tenham uma oportunidade de renda. “São pessoas que conhecem bem os territórios”, explica Thales Athayde, de 27 anos, CEO. A startup, nascida há oito anos no Rio e integrante da Favela Holding, que reúne empresas que atuam nas co- munidades, começou a operar em Paraisópolis (Zona Sul de São Paulo) em agosto de 2022, nos mesmos moldes da vizinha Favela Brasil Xpress. Após a junção com a Luft Logistics, abrirá cinco novas bases em abril, com 200 vagas para ex-detentos. “Queremos atender 500 favelas até o final do ano”, diz Athayde.

Do vôlei ao game: empresa de jogos e palestras
Do vôlei ao game: empresa de jogos e palestras; no detalhe, tela do jogo criado por ele (Homero Xavier/Divulgação)

Estúdio propõe criar games com inclusão

Morador da Favela Vila Guacuri, na Zona Sul, Victor Garcez, de 25 anos, chegou a jogar vôlei profissionalmente. Pelos estudos, teve que optar entre a bola ou a tecnologia, outra paixão. “A prática do esporte me abriu muitas portas, mas não me arrependo da escolha pelo estu- do”, diz. Formado no curso de jogos digitais, ele desenvolveu um game em que colocava um negro, assim como ele, como protagonista da aventura.

Depois, criou o VE-Power, a releitura do jogo jokenpô (pe- dra, papel e tesoura) feita sem as mãos e usando outras partes do corpo, o que permite a participação de pessoas com deficiências físicas. Com tino empreendedor, criou a Vision 03 Estúdio de Games, em que estão envolvidas doze pessoas. Uma de suas inspirações vem de um dos irmãos, que é PCD.

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Inovação: Silvana (de vermelho) criou peça sem saber costurar

Inovação: Silvana (de vermelho) criou peça sem saber costurar

Calcinhas para mulheres trans viram negócio de família

Sem mesmo saber pregar um botão, conforme ela mesma diz, Silvana Bento, de 46 anos, criou uma linha de roupas íntimas para mulheres trans que hoje é o sustento de toda a sua família. O produto carro-chefe é uma calcinha para “aquendar a neca”, que é o termo usado pela comunidade LGBTQIAP+ para se referir ao ato de esconder o pênis e os testículos para que eles não criem volume na roupa, e que tem entre suas clientes Linn da Quebrada.

A ideia nasceu à época em que ela era técnica em homoterapia e trabalhava num banco de sangue. O que chamou a atenção de Silvana foi saber que várias mulheres trans iam parar no hospital vítimas de insuficiência renal e infecção urinária, e muitas eram obrigadas a fazer hemodiálise ou se submeter a cirurgias. “Isso me chamou muito a atenção e acabei perguntando para médicos, enfermeiros e conversando com as próprias mulheres trans. Descobri que era pelo fato de não se hidratarem corretamente, ou mesmo terem que segurar o xixi durante horas, já que usavam fitas adesivas e até supercolas para aquendar a neca”, diz.

Um desses casos, o de uma mulher trans chamada Luiza, morreu ao seu lado. A cena nunca saiu de sua cabeça, principalmente no trajeto do hospital até sua casa, em Guaianazes, no extremo da Zona Leste. Até que um certo dia, mesmo sem saber desenhar, criou um rascunho de uma calcinha com uma espécie de bolsa que armazenava a genitália sem marcar a roupa. O desafio maior foi encontrar alguém que colocasse a ideia em prática, já que nenhuma costureira da vizinhança topou costurar a peça. “Eu mesma peguei uma saia de tule de uma das minhas filhas, recortei e fiz o molde”, diz.

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A única pessoa que topou fazer o produto foi uma designer de moda que tinha uma pequena fábrica de bonecas de pano e bichos de pelúcia. Quem também ajudou foi um dos filhos, Pietro Bento, um homem trans, que chamou algumas amigas da comunidade LGBTQIAP+ para experimentar o produto. As encomendas começaram a pipocar e então Silvana trocou a área da saúde pela da moda. Nascia então a Truccs, que chegou a ter uma loja física na Rua Augusta, mas teve que fechar as portas devido à pandemia.

As vendas continuaram de forma on-line e o negócio vingou. “O ganha-pão de toda a minha família vem das calcinhas”, diz. Uma das filhas foi estudar design de moda. Já o marido é seu motorista particu- lar e o filho mais novo, de 8 anos, ajuda com os vídeos e imagens dos produtos usados nas divulgações nas redes.

Superação: Lima transformou dor pessoal em ajuda às mulheres
Superação: Lima transformou dor pessoal em ajuda às mulheres; no detalhe, tela do aplicativo Todos por Uma (Arquivo Pessoal/Reprodução)

Aplicativo Todos por Uma combate violência contra as mulheres

As lembranças da violência doméstica sofrida contra a própria mãe foram o combustível que levou o desenvolvedor de sistemas Mateus de Lima, de 24 anos, a criar o Todos por Uma, um aplicativo que emite um sinal de socorro e avisa, em tempo real, a localização da mulher vítima de maus-tratos. A ideia rendeu ao jovem um prêmio de 80 000 reais por ter vencido um desafio da primeira edição do Expo Favela de 2022. “Infelizmente o aplicativo cresceu muito durante a pandemia”, conta Lima. Criado em 2019 como trabalho de conclusão de curso, atualmente o apli- cativo Todos por Uma tem mais de 20 000 usuários cadastrados e já foi baixado por pessoas de trinta países. Além disso, virou um negócio, ganhou homenagem num evento no Consulado de Israel, em Brasília, e também fonte de um mestrado que mostrou exemplos de como a tecnologia pode auxiliar mulheres vítimas de violência. O sucesso rendeu a Lima a possibilidade de participar de um curso na Escola de Negócios da Favela, criada a partir de uma parceria da Cufa (Central Única das Favelas), com a Fundação Dom Cabral, uma das mais prestigiadas escolas para gestores, executivos e empresários. O aplicativo permite à vítima cadastrar os chamados “anjos”, que são pessoas do seu círculo de confiança. Para evitar retaliações por parte do agressor, o app é camuflado numa tela que simula uma compra on-line. A vítima, ao utilizar um campo específico, aciona os contatos e mostra a eles a localização atualizada a cada trinta segundos.

Na Zona Leste: acesso à linguagem de programação
Na Zona Leste: acesso à linguagem de programação (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Aula de programação premiada

Ensinar a linguagem da programação por meio de uma comunicação descomplicada e que fosse facilmente entendida pelos jovens da periferia que não sabiam falar inglês foi a proposta dos amigos Diogo Bezerra, de 30 anos, e Tauan Souza Matos, de 29, ao criarem a Mais1Code, uma edutech que em menos de três anos já formou gratuitamente mais de 700 jovens em todo o Brasil. “Nós não tínhamos experiência com programação, mas convidamos amigos para ajudar, já que, até então, todas as escolas de programação ficavam no entorno da Paulista e da Faria Lima”, diz Matos. Crias do Jardim Pantanal, na Zona Leste paulistana, onde fica a sede, os dois tiveram uma ideia que chamou a atenção dos institutos Coca-Cola, Nu, SodexSo Bra- sil e grupo SBF (dono da Centauro e distribuidor da Nike no Brasil), que os apoiam. A Mais1Code também foi selecionada para participar de dois processos de aceleração e foi apresentada no evento Web Summit, em Portugal.

Diego: marca de skate identifica talentos na periferia
(Alexandre Battibugli/Veja SP)

Skate como ferramenta social

Depois de conseguir um investimento de 200 000 reais no reality show Shark Tank Brasil para reestruturar a escola de inglês que criou quando tinha 18 anos, a PLT4Way, Diego Ramos, hoje com 28, decidiu vender sua parte e abrir um novo negócio que mescla a sua paixão pelo skate com dar oportunidades a jovens talentos da periferia. Foi aí que nasceu, em 2021, a Somar Skateboard’s, uma iniciativa de impacto social que produz itens como skate, roupas e acessórios e os vende em lojas virtuais e físicas. Parte do valor é desti- nada para apoiar jovens atletas amadores a disputar campeonatos Brasil afora, além de buscar oportunidades para que eles consigam gerar renda com serviços relacionados ao esporte. Um desses atletas, Victor Calbuch, desfilou na edição de 2022 da São Paulo Fashion Week. Atualmente a Somar Skateboard’s emprega diretamente oito pessoas, sendo cinco delas atletas que também atuam no negócio. “Trabalhamos com várias formas de monetização para poder realizar sonhos”, explica Ramos. Além do projeto, ele também faz trabalhos como modelo.

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Publicado em VEJA São Paulo de 15 de março de 2023, edição nº 2832

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