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“Escritores periféricos alcançam mais gente. O povão vem com nóis”, diz Ferréz

Autor de Capão Pecado e Deus Foi Almoçar fala sobre preconceito no meio literário, isolamento social longe do centro e a difícil recuperação da Covid-19

Por Tatiane de Assis Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 29 jan 2021, 02h03 - Publicado em 29 jan 2021, 02h03

Como vê a recepção de autores periféricos no meio literário?

Existe uma dificuldade tremenda de aceitação. A gente tem de chegar sempre de cabeça baixa, na humilde. Tem todo um estereótipo que a gente tem de acatar. Se você chegar muito pá no evento, falando que você tava viajando, vendeu mais de 100 000 livros, que é meu caso, as pessoas torcem o nariz. Toda vez que eu falo isso, ouço: “Como assim? Não sabia que você tinha vendido 100 000?”. E eu respondo: “De um título só, viu? Não é de todos os meus livros não.”

E de onde você acha que vem esse estranhamento?

Esses caras falam para uns privilegiados, mas não são muitos, né, os privilegiados? Imagina, tem de ser privilegiado e ainda gostar de ler. Querendo ou não, escritores periféricos alcançam mais gente. O povão vem com nóis. A minha literatura não é morta, é viva nas ruas.

Em que momento da sua vida você decidiu que queria ser escritor?

Não sei exatamente, não teve um dia “X”. É toda uma trajetória que você vai indo, indo, indo e, quando vê, você já está lá, já está militando por isso. Eu lia muitos quadrinhos, frequentava muita banca de jornal, era muito sozinho. Quando eu ia ler meus livros, não tinha ninguém para comentar, então pensei que precisava divulgar o que eu estava lendo. A vontade de escrever também veio e aí comecei a divulgar o que estava criando. Na época não tinha internet, então eu tirava xérox, fazia fanzine e levava nos lugares.

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Seus pais o influenciaram?

O primeiro contato que eu tive com a palavra foi em casa. Meu pai comprava literatura de cordel, em Santo Amaro, que é um lugar próximo. Ele me pedia para ler porque tinha dificuldade. E minha mãe pintava muitas vezes frases nos panos de prato.

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Quando você encontrou sua turma da literatura?

Eu nunca encontrei minha turma na literatura até hoje.

Mas muitos autores jovens têm você como referência…

Eles podem achar que eu sou referência em um monte de coisa, mas não me encontrei. Quando me encontrar, paro de escrever.

Mas hoje você se sente mais acolhido, considerando que tem um grupo bastante forte de escritores periféricos?

Não sei não. Não me sinto confortável em ser acolhido. Não entraria em um clube, assim, como membro. Nunca escrevi para ter amigos, admirador. Não é importante quem escreve, mas sim a obra. Minha missão é outra, o que é importante para mim é que o livro infantil que escrevi chegue até a menina negra, de quebrada. Que ela sinta que aquele lugar de linguagem é para ela.

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No livro Deus Foi Almoçar (2012) você traz a questão que hoje chamamos de masculinidade tóxica. Em que momento o modus operandi de homens héteros começou a incomodá-lo?

Não lembro. Acho que a vida toda. Sou incomodado com muitos padrões que são colocados para a gente viver. Me incomoda o jeito com que os caras lidam com as mulheres. Na frente da família, muitas vezes, o cara é cordial. Mas, quando tá com os amigos, trata as mulheres como carne, mercadoria. Daí ele fala com você como se você fosse referendar o que ele disse, como se fosse companheiro de barbaridade. E não tem como nem tentar corrigir, porque é o tempo todo. Muitas vezes, você só diz: “Beleza, não vou participar disso aí”.

“Não é importante quem escreve, mas sim a obra. Minha missão é que o livro infantil que escrevi chegue até a menina negra, de quebrada”

Também nesse título você toca na questão da saúde mental na periferia. Quanto se fala mais sobre ansiedade e depressão nessas regiões?

Já foi mais tabu, hoje é menos. Comecei a falar disso desde o Manual Prático do Ódio (2003). Muita gente se identificou. As pessoas me paravam e diziam: “Pô, meu, ninguém nunca falou da coisa da depressão. Dos problemas dos moleques que cometem assassinato, eles podem ter algum problema neurológico”. É isso, né? A literatura serve para abrir questões.

Tem alguma pergunta nas entrevistas que concede que o incomoda?

Quando ficam perguntando coisas do tipo como é a vida na periferia, sobre a violência. Isso você não precisa perguntar ao escritor, você pode perguntar ao motorista, ao cobrador.

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Você sente que as pessoas se detêm mais à condição social do que ao seu trabalho?

Sim e acontece direto. Muitas vezes as perguntas são todas sociais, eu tenho de dar resposta de como resolver a fome no país, e não falam da obra. Escrevi um livro todinho, é um momento de falar dele e não vou ter essa oportunidade. Isso é muito triste. Mas é porque confundem a gente com o tema, que é muito forte. Você vira uma espécie de personagem.

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Como está a sua recuperação da Covid-19?

Fui curado, mas ainda estou muito mal. Não consigo falar muito, não consigo respirar direito. Vira e mexe, volto para o hospital para tomar oxigênio. É muito ruim.

Como você percebe a questão do isolamento social nas periferias?

Eu segurei quanto deu. Fiquei cento e tantos dias em casa, mas teve uma hora que precisei sair para pagar as contas. Muita gente depende de mim. E a periferia é assim, tá trabalhando para quem está em quarentena. Conheço muita gente de classe média que está em isolamento, mas a empregada não. Ela tá indo lá, volta pra favela. Quem pode ficar em casa, ótimo, mas a maioria da população teve de voltar para a vida real.

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De que forma a pandemia afetou a 1DASUL (marca de roupa com loja no Capão Redondo criada pelo escritor)?

Foi horrível. Fechamos a loja por dois meses. Quando o governo autorizou a abertura do comércio pela primeira vez, em 2020, continuamos fechados. Não acreditávamos que dava para abrir logo em seguida. Mas o público veio com a gente. As pessoas compraram muito pela internet, pelo WhatsApp.

E o que você espera deste 2021?

Espero que não seja um lado B de 2020, que é o que tá parecendo.

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Publicado em VEJA São Paulo de 03 de fevereiro de 2021, edição nº 2723

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