Para crianças e jovens em idade escolar, o período de férias costuma trazer uma bem-vinda pausa nas obrigações estudantis, com tempo livre para dormir, brincar e passar horas a fio com a cara grudada na tela do celular. Faz parte. De acordo com a pesquisa TIC Kids Online Brasil (Cetic.br, 2023), 95% dos brasileiros entre 9 e 17 anos são usuários de internet — sendo que, para 20% desses jovens, o telefone celular é o único meio de conexão com a rede. Mas, com o retorno às aulas, é hora de desconectar e encarar as restrições ao uso do aparelho, que boa parte das escolas da cidade já impõe.
“Até tentamos manter o acesso nos intervalos das aulas”, afirma Adriana Kac, diretora pedagógica do Grupo Inspired, dono da Escola Eleva, na Vila Mariana. “Mas o uso continuou excessivo e decidimos restringir: hoje, só podem ser usados na entrada e na saída.” Mãe de Victória, de 10 anos, que cursa o 5º ano do ensino fundamental na Eleva, a empresária Lucianne Carvalho comemora a decisão — e diz que ela contou pontos para a escolha da instituição. Isso porque, no ano passado, Victória foi vítima de cyberbullying, praticado por colegas de seu antigo colégio. A experiência mexeu com a menina. “Ela ficou muito chateada”, diz a mãe, que mudou a filha de escola e decidiu substituir o dispositivo por um tablet, com acesso controlado.
Postura semelhante teve o Colégio Santa Cruz, na Zona Oeste da cidade, que neste retorno às aulas praticamente baniu o uso de celulares em todo o ensino fundamental. Alunos do ensino médio podem utilizá-los nos intervalos ou em “determinadas atividades com propósito pedagógico”. A Camino School, também na Zona Oeste, proibiu-os dentro da escola. Segundo Leticia Lyle, diretora do colégio, a proibição dos aparelhos é a melhor solução para incentivar uma discussão mais profunda na sociedade.
Isso porque, apesar de todas as facilidades e da diversão que os chamados smartphones trouxeram para a vida moderna, é quase um consenso entre educadores, psicólogos e pediatras que o uso excessivo desse e de outros gadgets, por pessoas tão jovens, traz mais prejuízos que vantagens. Sendo assim, o ambiente escolar vem se tornando um espaço restrito para interações digitais — priorizando as atividades analógicas e coletivas — e incentivando a socialização nos momentos de lazer.
Para Erik Hörner, diretor do Colégio Humboldt, em Interlagos, em muitos casos, são os próprios pais que dificultam a desconexão dos filhos. “Existe uma superproteção e uma dificuldade de cortar o cordão”, afirma Hörner. No Humboldt, até o 8º ano smartphones não são permitidos, nem nos intervalos. “Já flagramos alunos se escondendo para poder jogar e fazer apostas pelo celular.”
Escritora de livros infantis e publisher do grupo editorial Edipro, Maíra Lot Micales concorda que é urgente a regulação do uso das telas pelas crianças e defende que os livros podem ser um ótimo aliado para isso. Tanto que, recentemente, publicou Larga Esse Celular! (Caminho Suave), livro infantil que mostra a rotina de uma família hiper conectada. Escrito pela autora vietnamita Bui Phuong Tam, o livro acompanha a personagem Ana na busca por uma vida real mais colorida.
Para Maíra, minimizar o tempo diante da tela é melhor do que proibir, porque o mundo digital também tem as suas vantagens. “Minha filha Valentina, de 12 anos, aprendeu a tocar uma música de Mozart ao piano vendo aula pela internet e estudou francês por um aplicativo no celular”, afirma Maíra, que é também mãe de Luca, de 10 anos. O caçula, aliás, foi fazer um curso de programação por gostar muito de jogos eletrônicos. Mas tudo respeitando o tempo — inclusive para o ócio.
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), por meio do grupo de trabalho Saúde na Era Digital, produz, desde 2016, uma série de documentos com orientações sobre o impacto do excesso de telas na saúde de crianças e adolescentes. Esse material está disponível no site da entidade (sbp.com.br). Entre os estudos que apoiam as orientações da SBP está a pesquisa TIC Kids Online Brasil, conduzida pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br). Em sua 10ª edição (2023), a pesquisa, que ouviu quase 3 000 jovens, além de seus pais ou responsáveis, apontou que a utilização da internet cresceu significativamente entre os anos de 2015 e 2023. E mais: atualmente, 88% da população brasileira de 9 a 17 anos possui perfis em redes sociais (veja os quadros acima).
Para a psicanalista e escritora Sandra Niskier Flanzer, autora do livro Jovens em Tempos Digitais, a relação das crianças e jovens com o celular é uma preocupação geral, multidisciplinar, que inclui os pais e a escola. “Não adianta sermos saudosistas: a tecnologia está dentro das escolas e pode ser uma ferramenta de ensino”, diz Sandra, que fez pós-doutorado em teoria psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mas é preciso haver limites, para evitar consequências como crises de ansiedade, insônia, depressão e dificuldade de socialização, entre outros. “O mundo digital provoca uma perspectiva imaginária de completude. É como se a pessoa se bastasse”, relata Sandra. Mas a vida real não funciona assim. E a livre utilização de celulares dificulta justamente a socialização e o enfrentamento das agruras que o convívio traz. “É na escola que a criança e o jovem exercitam a fundamental relação com o outro.”
Publicado em VEJA São Paulo de 9 de agosto de 2024, edição nº2905
Leia mais em: https://vejasp.abril.com.br/cultura-lazer/guto-lacaz-mostra-itau-cultural