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Driblando a vida

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 14h23 - Publicado em 7 jun 2014, 00h00

No domingo passado, um estudante estrangeiro de gastronomia, turista de Copa e cozinha, ao ver um homem numa esquina das colinas de Perdizes com uma grande seta de plástico pendurada no pescoço, ao pé da qual se liam alguns números em metros quadrados, perguntou-me, intrigado: “Que faz aquele homem?”. Abriu a boca de espanto com a explicação: está mostrando a quem passa onde é que tem apartamento novo para vender nesta vizinhança. “Unbelievable!” — inacreditável, ele disse. Os paulistanos, habituados ao homem-seta, o veem sem ver, assim como ele os vê sem ver, paisagens os dois, tendo os passantes já aprendido a linguagem tosca da seta: “apartamento em construção ali, ó”.

 

Para que sonhos aponta a seta do homem-seta? O alvo será o destino de algum passante? Indicará o rumo seguro do dinheiro de quem passa? Da vida que passa? Do caminho a seguir? No que pensa o homem-seta, olhar perdido, ele, que só tem de certa aquela seta? O que mira o homem-seta, com sua mirada vazia que aprendeu a desprender-se das coisas, ele mesmo não mais que paisagem? Por que esse olhar que não vê? A quem se dirige a indiferença do homem-seta: a nós? Como explicá-lo neste século cibernético?

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Dizem, não garanto, que é um fenômeno paulistano, surgido após a Lei Cidade Limpa, que proíbe cartazes, placas e faixas de vendas nas ruas da capital. Os homens-seta seriam um drible da vaca na fiscalização. Esse drible é aquele em que o jogador toca a bola de um lado do adversário, dá a volta em torno dele pelo outro lado e retoma a bola adiante. Não havendo apelo explícito de venda, do tipo “Compre” ou “Vende-se”, os fiscais ficariam sem argumento para a multa, que pode chegar a 10 000 reais por placa ou faixa. Mas essa é uma certeza precária, há membros da Comissão de Proteção à Paisagem Urbana que acham que dá para enquadrar como propaganda de rua os homens-seta.

Antes da Lei Cidade Limpa havia nos lançamentos imobiliários uma festa de bandeiras agitadas em longas varas, balões, roupas coloridas de cetim, fitas, música. Hoje, no sábado do feijão gordo ou no domingo do futebol, senhores com ar ausente aguardam atrás de suas setas de papelão a hora de ir para casa, ou o dia de arrumar coisa melhor.

Ficam ali, cumprindo pena de oito horas de sol ou de frio, por 50 reais, com direito a lanche, água e transporte da sede ao “ponto”, ida e volta; os que têm sorte recebem banquinho e boné; com muita sorte, guarda-sol ou protetor solar, se não houver árvore na esquina. Trabalho desumano? Argumenta-se: melhor do que pedir, roubar ou nada fazer para botar um pouco mais de dinheiro em casa. Sim, melhor. Mas pior do que tanta coisa que ele poderia fazer caso tivesse outra seta na vida, melhor rumo, algo que não lhe desse esse não-olhar com que me olha, nos olha.

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Ele não está sozinho. Já não estão ali com ele seus irmãos de despreparo, os homens-placa, os homens-sanduíche, proibidos pela Cidade Limpa, mas há jovens nessa atividade, rapazes-seta e moças-seta, tomara que apenas fazendo bicos temporários, enquanto não seguem outro destino que não o das setas que carregam. No que pensa a moça-seta? Tem namorado, beijos para dar, a moça-seta? Família para ajudar, salão de beleza para se cuidar? Com que futebóis, com que sucessos sonha o rapaz-seta? Tomara que estejam apenas dando o drible da vaca na vida.

ivan@abril.com.br

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