Curso para comissário de bordo tem teste de sobrevivência na selva
Realizada em uma fazenda no interior do estado, maratona dura 14 horas e simula condições de acidente aéreo
São 8 horas da manhã de sábado (16) e 217 aspirantes à carreira de comissário de voo, mulheres na maioria, respiram fundo para um dia de treinamento intensivo de sobrevivência na “selva” (no caso, uma chácara na região de Juquitiba, a 74 quilômetros de São Paulo), do qual só sairiam catorze horas depois, exaustos, famintos e sujos de terra. O gaúcho Gregory da Silva Pereira, de 23 anos, que mora com a família em Interlagos, saca da mochila um par de luvas de lã. “As mãos são preciosas, a primeira coisa que o passageiro olha”, justifica, já pensando em manter as unhas impecáveis para o processo seletivo de uma companhia aérea.
Ser aprovado na bateria de tarefas (que inclui encontrar comida, montar abrigo, nadar em água a 4 graus e socorrer passageiros) é uma exigência da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). A profissão tem salário inicial de 2.500 reais e não requer curso superior. Com quatro anos de experiência como mecânico de aviação, ocupação que lhe rende 850 reais mensais, Pereira é um dos jovens que tentam decolar na carreira a reboque da ascensão desse mercado no país — o número de passageiros saltou de aproximadamente 90 milhões em 2006 para cerca de 139 milhões em 2010, um crescimento de 55% no período.
A demanda por tripulação cresceu em ordem proporcional, e profissionais de bordo passaram a ser bastante disputados. Só a TAM aumentou seu quadro de comissários em 28% no ano passado, chegando a 6.434 profissionais. Também em 2010, vários voos foram cancelados ou sofreram grandes atrasos porque todo o quadro de funcionários estava no limite legal do número de horas trabalhadas.
No treinamento, a modelo Pamela Carvalho, de 24 anos, dizia que havia escolhido a carreira pelo “glamour”. Justo ela, que, no período da tarde, quando todos estavam mais do que esfomeados (só era permitido comer punhados de açúcar e de sal, e até as barrinhas de cereais, lanche-símbolo da popularização das viagens aéreas, eram proibidas), foi designada para degolar uma galinha, que serviria de alimento a seu grupo, de dezoito pessoas. Com uma faca na mão, e diante do animal pendurado de ponta-cabeça no galho de uma árvore, a moça chorava, soluçando. “Tadinha, moço”, suplicava.
Nada, no entanto, mudou a ordem do instrutor Everaldo, um dos mentores do curso da escola de aviação Ceab, a responsável pelas provas. Caso não cumprisse a tarefa, Pamela prejudicaria os dezessete colegas: cada um deles ganharia um ponto negativo, e a soma de cinco implicaria reprovação no desafio, sem ressarcimento dos 350 reais desembolsados pela “aventura” — pagam-se também 2.000 reais por quatro meses de aulas teóricas.
Enquanto Pamela sofria, os integrantes de seu grupo se dividiam entre a apreensão e a indiferença. Eram 3 da tarde, e a fome já causava reações extremas. Marina Nicastro, de 18 anos, ofereceu-se como voluntária para devorar o coração da galinha cru. Outros, a contragosto, bebiam o sangue do animal em um copo. A aluna Laís Barbosa, 21, analisava a comoção com espantosa objetividade: “A fome se sobrepõe à repugnância. Está na apostila”.
Para o diretor da escola, Salmeron Cardoso, que treina comissários há doze anos, a privação é necessária para reproduzir as condições que os futuros comissários podem, um dia (toc, toc, toc), encontrar em caso de acidente ou pouso forçado. A escola chega a formar 1.600 alunos por ano — em 2011, projeta um número 30% maior. “Há muitas vagas na carreira, mas essa geração quer tudo de mão beijada”, diz ele. “No primeiro obstáculo, vários já desistem. Por isso aqui sou exigente e mostro que eles são capazes.”
No fim do dia, ocorreu apenas uma reprovação. A aspirante 214 tomou cartão vermelho ao ser pega em flagrante comendo escondido uma barrinha de cereais. Os demais saíram de lá extenuados, mas cheios de planos. Erica Schermann Arai, 28 anos, trancou o curso de administração para virar aeromoça. “O mercado de aviação está aquecido por causa da Copa e da Olimpíada. O tempo de formação é curto e a possibilidade de retorno, rápida”, comentava. Motivação semelhante tem o maranhense Carlos Thadeu Viana Rabelo, 26 anos, que veio de São Luís a São Paulo para se formar comissário. “Quero me profissionalizar a curto prazo, além de aproveitar para viajar o mundo”, apostava, ao deixar para trás os obstáculos da mata de Juquitiba.