Como se fosse a letra de um bolero antigo, assim se passaram dez anos e chegou a hora de renovar a carteira de identidade. Na minha parcial opinião, a foto do RG e a realidade combinavam perfeitamente, mas a mocinha do Poupatempo da Sé não quis nem saber: “Vai tirar foto nova”. De nada valeram meus apelos. “Coloca uma do Brad Pitt. Ou do Rodrigo Santoro. Ninguém vai reparar.” Ela riu — e ainda me mandou tirar os óculos. Ou seja, o meu documento novo terá a imagem de um panda sonado. Mais magrinho, é bom que se diga, mas panda.
+ Crônica: Coisas muito estranhas
A outra atendente, responsável pela atualização dos meus dados, foi simpática, mas direta. “Cabelos? Grisalhos!”, ela disse, sem querer ouvir minha explicação sobre o efeito da baixa umidade do ar nas minhas madeixas. E os olhos, que eu sempre acreditei serem castanho-esverdeados, ela reduziu a castanho claros. Só aceitou mesmo minha versão para a altura, mas nessa hora eu já havia desistido de vender uma imagem melhorada e disse a verdade mesmo.
Em menos de quinze minutos numa tarde quente paulistana, eu tinha protocolado uma nova carteira de identidade, com o bônus indesejável da inexorável passagem do tempo. Por melhor que seja o atendimento no Poupatempo — e ele é bem bom —, acredito que há uma enorme lacuna aí a ser preenchida. Por que, ao renovar o RG, nós não ganhamos o direito a uma verdadeira identidade nova? Não me refiro a um nome novo. A não ser que você se chame, sei lá, Clozimério ou Assassina. Quando falo de identidade nova é isso mesmo: um novo eu. Ou um novo você, depende. Não foram poucas as vezes em que estivemos numa situação arrematada pela frase lapidar: “Ah, como eu queria ser diferente!”. Renovar o RG no Poupatempo poderia ser essa oportunidade.
Imagine a maravilha. Não era apenas o documento: você mudava por inteiro. O tímido ia pedir uma dose maior de ousadia. A assanhada poderia querer um pouco, só um pouco, de contenção. O ansioso, mais calma. O preguiçoso, mais ânimo. Alterar um tico que fosse o nosso jeito de ser. Ou a cor dos olhos. Quem sabe dessa vez a coisa andasse? Talvez não fosse necessário — ou recomendável — passar dez anos com a mesma persona transformada. Até porque, com o avançar da idade, os desejos e impulsos mudam e se adaptam.
Talvez valesse a pena um detector de bom-senso, para evitar desencontros entre aspirações e realidade. Tipo os testes que proliferam nas redes sociais (“Que personagem dos filmes do Zé do Caixão você é?”). Haveria uma série de perguntas capciosas, daquelas que fazem o inocente se entregar sem perceber. Sairíamos da sala com um receituário mais preciso: falta uma dose de malícia, 20% de malemolência e um bocadinho de romantismo nos momentos íntimos. Pequenas aplicações levariam felicidade a muitos lares.
Definitivamente, renovar um documento só para ganhar oficialmente uma cabeleira grisalha é muito pouco. Saber que está dez anos mais velho, qualquer tabaréu que estudou aritmética sabe. Não preciso agendar atendimento para chegar a essa conclusão. Nem anseio por uma reforma da natureza feita à moda da Emília, no Sítio do Picapau Amarelo. Infelizmente, a tecnologia ainda caminha a passos de tartaruga manca e não atende à real carência de nosso povo tão sofrido. E grisalho.