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Oi, pai

Confira a crônica da semana

Por Ivan Angelo
4 ago 2017, 18h25
 (Negreiros/Veja SP)
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Tentei ser um pai mais doce, corrigir falhas no ofício de ser pai. não é o que fazemos sempre quando nos tornamos pais? Ou: não é o que deveríamos fazer? Corrigir certos modos de ser pai, evitar o que nos doeu quando crianças. Tanto me adocei que minhas filhas me davam um pedaço do Dia das Mães.

A prática nos ensinou, a nós, mais antigos, que ser pai não é desdobrar fibra por fibra o coração; ser mãe é que é, desde que Coelho Neto perpetrou aquele soneto que ficou famoso para além dos seus méritos. Ser mãe é natureza; ser pai é um papel que se aprende seguindo o modelo básico, séculos afora.

Os pais, em geral, passam por três fases: na primeira, quando já são e ainda não sabem o que fazer, estão aprendendo. Os filhos também não sabem como funciona a coisa toda, e aqueles dois não saberes se relam, o mais cansado ou impaciente erra: é mais fácil punir do que ensinar. na segunda fase, filhos crescidos, artífices dos próprios erros, fica difícil acomodar vontades e domínios, rancores brotam na terra de ninguém. A terceira fase é quando eles se tornam pais de pais, avôs, e já sabem como é a coisa toda, mas aí a função muda, são apenas conselheiros, não executivos.

Na primeira fase, meu pai tinha uma vara. A fileira de meninos sentados no chão era submetida ao interrogatório para apurar quem foi — alguma vidraça quebrada no vizinho, algum passarinho morto na gaiola, algum cimento fresco pisoteado —, e o máximo que obtinha dos interrogados era um “não fui eu” em lágrimas e raiva. Não conseguia quebrar o pacto de silêncio dos pequenos mafiosos, e mais tarde o ouvíamos comentar com uma visita, até orgulhoso, que éramos “duros na queda”, difíceis de dobrar.

Na segunda, observadores, nunca o vimos fumar. Pois se proibia, para evitar que fôssemos fumantes, como que ia aparecer com cigarro na boca? Dos oito filhos, só o primeiro, mais revoltado com a severidade dele, e o último, que pegou um pai mais cansado de ser duro, fumaram. Os dois tiveram câncer. Víamos seu uniforme de militar, suas fotos do acampamento na revolução de 32, mineiros contra paulistas, e esperávamos histórias que não contava, de bravuras e perigos. De si, pouco falava.

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Na terceira fase, a de avô, não o via tanto, eu já morava em São Paulo. Com minha mãe doente grave, amiudei minhas idas a Belo Horizonte. Ele sempre naquele jeito esquivo, só quebrado na manhã em que minha mãe morreu, e nós dois ficamos um tempão calados e tristes na janela do hospital, olhando lá para fora, até que ele, para meu espanto, puxou um cigarro, acendeu — algo se desatou nele — e falou como um rio, escoando, do tempo do seu trabalho à noite como motorista de carro de aluguel, tinha de trabalhar para reforçar o soldo de militar, levava fregueses às casas de jogo, levava mulheres para eles, trazia de volta, mulheres que se ofereciam, e ele nunca aceitou, nunca traiu nossa mãe, tinha prometido a ela que nunca fumaria, mas não dava para ficar horas e horas nas portas dos cassinos e cabarés sem um cigarrinho, quando conheceu nossa mãe era motorista de coronel, depois foi destacado para a frente mineira contra os revoltosos de São Paulo, aí casou e foi para o 9º Batalhão, de Barbacena, ajudante de ordens do capitão rosa, médico que virou escritor, por isso que nós nascemos lá, e falou, falou…

Morreu faz 42 anos. Em devaneios, fantasio provocá-lo:

— Oi, pai. acende um cigarrinho aí, vai, e conta mais.

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