Sinusite. Tosse. Garganta, nariz, olhos, aquele caos, dois dias, três dias seguidos. Até que, amanhecendo, acordou surdo. Não sabia ainda o que estava acontecendo quando, desperto, sentiu uma agradável suavidade na manhã de agosto, silêncio, aconchego, abraçado pelo escurinho do quarto. A estranheza do primeiro momento foi logo substituída pela sensação de conforto por não ouvir o plic plac zum do amanhecer, a descarga sanitária do apartamento de cima, o caminhão de lixo subindo colinas no bairro de Perdizes, a montagem da feira livre na porta, o buzinaço dos motoristas matinais, irritados menos com o trânsito do que com ter de ir trabalhar. Durante parte da manhã deixou-se envolver por um difuso prazer de não ouvir.
Tateou aquela sensação a sós, experimentando. Os próprios passos até o banheiro, habitualmente audíveis apesar de cautelosos para não acordar a companheira, pareciam aveludados, como se ele estivesse calçando meias em vez de chinelos. Imperfeita só a respiração, pela boca. O silêncio do jato de urina no vaso sanitário e da água da torneira na bacia da pia foi recebido com bom humor: primeiro estranhou, depois sorriu. Estava surdo, e não era ruim.
Considerou aproveitar aquela paz um pouco mais. Tranquilo, pois sabia o que estava acontecendo. Era uma sexta-feira, avisaria por e-mail ao escritório que não dava para ir e se largaria para usufruir o inesperado silêncio.
Um dia incomum se desenrola: não ter de responder às pessoas, apenas sorrir gentilmente, murmurar com doçura algum “bom dia”, “o.k.” ou “estou melhor, o.k., tudo bem”, não ter de acompanhar o noticiário dos telejornais, captar das palavras que lhe dirigem apenas frações, em leitura labial, não ser tentado a opinar em conversas de padaria, a argumentar qualquer coisa, a apontar qual candidato foi melhor no debate. Escapar do óbvio que vai vitimando os dotados de ouvidos desprotegidos, os de paciência no limite. O ar beatífico com que o não ouvinte vai acompanhando a obviedade dita é interpretado como amena concordância, mas ele não se importa, está a salvo.
Tem o privilégio de não ouvir a música que vaza dos celulares, ou vem dos vizinhos, ou dos carros emparelhados no trânsito, ou dos shows batidos da televisão: o funk pancadão, o hip-hop todo igual, o rock guinchado, a sertaneja tremelicada. Passa leve por esse som cascudo, que incomoda pessoas ao redor, mas ele não, ele segue confortável, de bem com o mundo, intocado pela agressão.
Desfruta o prazer de não ouvir a gritaria das telenovelas, dos filmes de pancadaria. No máximo, se não pôde escapar da companheira que pede companhia no sofá, vê na telinha aquela pantomima que se torna cômica sem o som, os esgares e gestos dos atores denunciando recursos primários de representar. Não tem de pedir que baixem o som da televisão, mergulhado no assim está bom, no cochilo sem sustos.
Foi recebendo ao longo do dia o prêmio pela sua escolha, a de não ter corrido aflito ao consultório de um otorrino: pensar, ler com atenção, focar, descansar. E nisso chega o sábado. A experiência decepcionante foi assistir ao futebol no estádio. Sem os urros, palavrões e o coro ensaiado das torcidas, o jogo parecia um balezinho sem música, não teve graça. No domingo, durante o culto religioso, os louvores abafados não conseguiram elevá-lo às aleluias; à noite, no clube, passou batido no bingo beneficente.
Na segunda-feira, procurou um médico.