Saio de um batizado, bem-arrumado, camiseta chique, limpo de barba e sapatos, suave colônia ainda ativa, e tenho de atravessar na contramão uma passeata de jovens cujo desodorante havia desistido após horas de militância ao sol. Dá tempo de esperar que escoe o fluxo, mas só cuido de um detalhe: o estacionamento vai fechar. Avanço, desagradando. Até o momento em que sou barrado por um roliço par de pernas em short e uma faixa amarela com os dizeres “Fora você também, Cunha!”. A dona das pernas me grita, como um insulto:
— Coxinha!
Logo fazem coro, coxinha, coxinha, e o corredor que se abre goza: coxinha, coxinha. Chego ao estacionamento já não tão cheiroso nem arrumado, mas em tempo, e encucado: por que coxinha?
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Tive um amigo que nos anos 70 era chamado de coxinha — totalmente outra coisa. Era um modo à socapa de rirem do seu design físico, grosso tórax arredondado, finos quadris, bundinha mirrada. Nada a ver com o termo pejorativo de hoje. Por que coxinha? Metáfora exige lógica. Há de haver uma adequação entre o significado de uma expressão nova que tira por empréstimo uma palavra do seu contexto e a coisa que ela nomeava originalmente.
É assim com gata, por exemplo: graça felina e feminina. Brotinho, bambi, sapatão — na delicadeza ou na grossura, há um rastro. Mesmo em expressões montadas, petralha, por exemplo, é possível rastrear a lógica. Procurei a lógica de coxinha. No sentido de pessoa que se liga na aparência, arrumadinha, roupas finas, salão de beleza, academia — não havia. Nada a ver com um salgadinho engordurado, amontoado, arredondado. Não vi lógica nos sinônimos que me deram: mauricinho, patricinha.
Nomes bem arrumados na origem, nem populares como os Joões, Josés e Marias, nem equivocados à procura de originalidade como os Welesleys, as Jhessykas, os Uoshitus, as Paollas. Na zoação dos colégios, os primeiros são nomes dos certinhos, burguesinhos; os últimos são dos bregas cujos pais buscam uma diferença, pelo menos no nome. Isso continua não tendo nada a ver com salgadinho de boteco. Estive em Belo Horizonte, capital da empadinha, do pão de queijo, da coxinha. Lá a expressão existe, aplicada de modo negativo aos tucanos, mas dizem que a origem é paulistana. Deve ser, porque aquela mulher que agrediu o ex-senador Suplicy na Livraria Cultura, em outubro, gritava: “Aqui é terra de coxinha!”. Gritava com orgulho, e aí já não entendo: é pejorativa a expressão ou não é?
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“É que a coxinha é um todo acabado, fechado, completo, não cabe mais nada dentro”. Acho piada, como diriam os portugueses, mas será? Quem diz coxinha sabe disso? De novo em São Paulo, insistem na história de que o termo teve origem nas rondas dos policiais militares. Parados com suas viaturas nas proximidades das padarias abertas até tarde da noite, eles davam uma passada pelo balcão e ganhavam a gentileza de uma porção de coxinhas.
Esse hábito teria ligado semanticamente a lei, a ordem, a segurança e a coxinha. Tinha lógica, mas eu queria ir mais fundo, buscar o quando, suspeitava que o uso da palavra era anterior à política recente. Encontrei. Um colega, fã do hip-hop e do rap da periferia, botou nos meus ouvidos uma faixa dos Racionais MC’s, Da Ponte pra Cá, de dez anos atrás. Está lá, quase no final da letra enorme que exalta a favela e fala do medo dos PMs na ação: “Os moleque tem instinto e ninguém amarela, / os coxinha cresce o zóio na função e gela”.