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Coração de Cristal

Por Walcyr Carrasco
Atualizado em 5 dez 2016, 18h52 - Publicado em 14 abr 2010, 16h27

Quando minha mãe ficou doente, eu e meus irmãos nos surpreendemos. Dona Angela sempre fora tão saudável! Um amigo me alertou:

– Água nos pulmões pode indicar coisa séria.

O diagnóstico confirmou a gravidade: metástase de um tumor nas glândulas suprarrenais, sem possibilidade de operação. Até então não tivera um único sintoma! Em torno dela se formou uma rede de silêncios. Nunca gostara de falar de doenças de pessoas próximas, que dirá da sua! Eu brincava:

– Se é água nos pulmões, precisa de um encanador, não de um médico para retirar!

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Ela ria. Dentro de mim, um nó diante de sua dificuldade para respirar, mas tentava elevar o astral. Aos poucos ela mesma percebeu a gravidade de seu estado, e as brincadeiras sumiram de nossos encontros.

Resolveu permanecer em Santos, onde morava. Após a morte de meu pai, iniciara um namoro com seu Olimpio, um aposentado de sua idade. Ele a acompanhava nas internações, segurava sua mão. O tratamento continuou, paliativo. Intimamente eu rezava para que partisse antes de sofrer demais.

Havia tanto para falar! Muitas vezes, eu e mamãe nos desencontramos, ao longo da vida. Sonhava que eu tivesse uma vida estável, com bom emprego e casa própria. Não entendeu quando me rebelei para seguir meus próprios caminhos. Era uma mulher simples que na infância vivera pobremente, com seus pais, trabalhadores da roça. Parou de estudar menina, no 3º ano do antigo primário, quando deixou a escola para ir colher algodão. Casada, ajudava meu pai, ferroviário, com um pequeno bazar, mais tarde vendeu roupas feitas. Enfim, buscava maneiras de incrementar a renda da família. Seu maior medo era que um dos filhos passasse necessidade. Ao contrário de seus desejos, eu me arriscava de emprego em emprego, buscava outro tipo de vida. Discutimos muitas vezes porque eu não me preocupava com a segurança que ela tanto ambicionava. E me distanciei de minha mãe. Já maduro, não reconstruí essa ponte como gostaria. Ríamos juntos, conversávamos sobre a família, mas já não compartilhávamos a vida.

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Agora, diante de seu leito, eu queria dizer que sua vida valera a pena. Seu carinho, seu apoio, a certeza de que estava ali haviam sido fundamentais para eu me tornar o homem que sou. Mas as palavras não saíam. Ia ao hospital e falávamos sbre assuntos triviais. Tantas palavras sufocadas. Eu me despedia, prometia vol¬tar logo. Aguardava o momento certo para dizer:

– Foi muito bom ter você na minha vida, mãe!

Mas esse momento parecia não chegar.

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Então, um domingo, após estacionar no hospital, resolvi lhe comprar um presente. Entrei numa loja próxima. Nas prateleiras repletas de objetos indianos e velas decorativas, descobri um pequeno coração de cristal. Não tive dúvidas: era ele que eu queria!

Ofereci o coração:

– Vai atrair boas vibrações! – minha mãe me respondeu com um olhar intenso, emocionado.

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Foi a última vez que a vi com vida. Partiu na quarta-feira seguinte, de noite. Desci para Santos. Com meus irmãos, providenciei a despedida. Uma de minhas sobrinhas visitara mamãe no dia anterior. Comentou:

– Ela me mostrou o coração que ganhou de você. Não o largava. E se despediu com ele na mão!

Não encontramos o coração entre suas coisas. Ao olhar sua mão fechada, imaginei que talvez ele ainda estivesse lá, preso em sua palma, bem apertado. E me senti reconfortado. Ela entendera o significado do presente, aceitara as palavras não ditas, deixara seu coração falar. Com o coração de cristal, entregara também o meu. E mamãe partira levando meu amor.

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