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Vai virar shopping? Os problemas do Complexo Esportivo do Ibirapuera

Espaço que deve ser concedido para a iniciativa privada virou um dos assuntos mais comentados após ter processo de tombamento negado

Por Guilherme Queiroz
Atualizado em 11 dez 2020, 15h56 - Publicado em 11 dez 2020, 15h56

Com 63 anos de idade, o ginásio Geraldo José de Almeida é, segundo federações esportivas e ex-atletas, obsoleto. Ele faz parte do Complexo Esportivo do Ibirapuera, que reúne também outros edifícios construídos entre a década de 1950 e 1980, igualmente parados no tempo. “Quando eu entro ali, tenho vergonha”, diz a ex-jogadora de basquete e medalhista olímpica Maria Paula Gonçalves, a Magic Paula.

O apontamento não é único. Uma carta aberta assinada por dezesseis federações esportivas afirma que o ginásio tem uma infraestrutura pouco adequada aos padrões internacionais esportivos. No texto, os representantes relatam espaços com dimensionamentos inferiores ao mínimo para a realização de competições de modalidades como futsal, handebol e tênis; pouco conforto ao público, com baixa visibilidade nas arquibancadas; ausência de sistema de climatização e portas e corredores com dimensões da década de 50, que dificultam a montagem de estruturas para eventos.

A carta afirma também que o ginásio não tem condições adequadas de acústica para a realização de eventos esportivos. “O teto não suporta o peso para se colocar um telão decente”, aponta o arquiteto, professor da FAU-USP e presidente do Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico), Carlos Augusto Mattei Faggin.

Além disso, o texto das federações aponta problemas no complexo aquático e na pista de atletismo que, “para adequar-se às necessidades atuais das práticas, necessitaria de uma completa reestruturação”.

REJEITADO

“O que temos é um mostrengo que custa mais de 10 milhões para o estado”, critica Magic Paula. “É um complexo da década de 50, bem defasado. As necessidades dos atletas e do público são totalmente diferentes. Não tem o menor conforto nem para quem joga nem para quem vai assitir”, afirma Luiz Fernando Balieiro, presidente da Federação Paulista de Tênis.

Ele lembra um episódio em que a cidade teve a chance de sediar o torneio ATP Finals, que reúne os oito melhores tenistas do mundo, em 2001, mas a estrutura do Ibirapuera impediu. “Quando o Guga [Gustavo Kuerten] era o número 1 do mundo, tivemos a possibilidade de trazer o Finals. Não veio por conta do Ginásio, que não oferece condições técnicas para sediar o evento”, diz ele sobre a competição, que naquele ano ocorreu em Sidney, Austrália.

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“O ginásio foi construído em 1957. Em 1980 já estava obsoleto. [O esporte] a partir da década de 90 evoluiu em tudo, em treinamento, equipamentos, construções. Eu joguei um mundial lá em 1983 e eu lembro que tinha goteira”, diz Magic Paula.

Há 17 anos houve um concurso para a reforma do Ginásio do Ibirapuera. O vencedor foi o projeto arquitetônico do escritório Vigliecca Associados. De acordo com a secretaria de esportes, o governo, que na época era de Geraldo Alckmin, decidiu pela “não execução e arquivamento do projeto, tendo em vista o valor de 90 milhões de reais [em valores atuais, cerca de 300 milhões de reais]”.

De acordo com a secretaria estadual de esportes, nos últimos anos “houve consultas da FIFA e de dezenas de confederações e federações de variadas modalidades esportivas para eventos no Ginásio, que ao terem conhecimento de algumas defasagens, como falta de climatização, não cumprimento das medidas oficiais na quadra poliesportiva, deficiências acústicas, falta de estrutura para transmissões ao vivo e ausência de conectividade, declinaram das tratativas”.

A pasta informa também que nos demais equipamentos (campo de futebol, pista de atletismo e complexo aquático) não houve a realização de nenhum evento ou competição oficial por conta de “defasagens estruturais”.

POLÊMICA

O Complexo Esportivo se tornou um dos assuntos mais comentados da semana após o Condephaat negar a abertura de um estudo para um possível tombamento do local. Em 2019 a Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou uma lei que permite a concessão do local para a iniciativa privada. A possibilidade da demolição do ginásio ganhou polêmica nas redes sociais.

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O secretário estadual de esportes, Aildo Rodrigues Ferreira, afirma que a lei “estabelece que [a iniciativa privada deve construir] uma arena multiuso para 20 000 lugares, com tecnologia e toda a estrutura moderna que o esporte determina. Tem prioridade o uso artístico, cultural e esportivo”.

Ele também rebate a afirmação de que o local vai virar um shopping. “Não é verdade”. Ferreira conta que a imagem que circula nas redes sociais, que mostra uma remodelação do endereço, é um projeto referencial que “serve apenas para calcular a viabilidade financeira” e que o futuro do local ainda não foi definido, pois o projeto da iniciativa privada não foi escolhido. “Obviamente serão admitidas atividades comerciais e de lazer, que vão trazer a viabilidade econômica. Vai depender do projeto a ser apresentado. A lei também tem uma novidade: garantir espaços gratuitos para a população, o que não acontece hoje, que é um local restrito e fechado” 

No entanto, nesta sexta-feira (4), o governador João Doria (PSDB) divulgou um vídeo nas suas redes sociais que utiliza imagens do suposto projeto referencial. As imagens afirmam que o local terá um hotel, lojas e serviços, um heliponto, além da prometida arena no espaço batizado de Ibirapuera Complex. Questionado, o secretário afirmou que “as imagens do vídeo são referenciais uma vez que não existe projeto definitivo ainda. É exatamente como falei”.

O edital para a concessão deve ser publicado no final de dezembro. Ferreira acredita que em janeiro deve ocorrer a abertura dos envelopes e em março, a assinatura do contrato. 

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NÃO TOMBAMENTO

Já a polêmica em torno do Condephaat começou há dois meses, de acordo com Carlos Faggin, o presidente do órgão e professor da FAU-USP citado acima. “Recebemos um pedido de estudo para tombamento. O DPH [Departamento do Patrimônio Histórico] analisa, faz um dossiê e isso vai para o Conselho”, explica. Depois é escolhido um relator, que emite um parecer sobre o caso. A primeira reunião foi no dia 26 de outubro. A última, no dia 30 de novembro.

“Foi uma reunião que durou quatro horas. É necessário dois terços dos votos para a abertura de estudo de tombamento, o que não aconteceu”, diz Faggin. O arquiteto explica que o processo de estudo é, por vezes, mais restritivo do que o próprio tombamento. “Enquanto isso ocorre, que não tem prazo, não pode mexer em absolutamente nada. Isso corresponderia a impedir a concessão, que é uma lei. O objetivo do Condephaat não é esse. Ele não pode ser responsável [por isso]. Existe uma lei, ela tem que ser cumprida”.

Para além do imbróglio político que o caso ganhou, entre os que são contra ou a favor da concessão (o que pode ter ganhado peso na análise), Faggin diz que a não abertura do processo ocorreu também por motivos técnicos.

“Nós analisamos edifício que tenham qualidade, que possam ser valorizados e eventualmente tombados. Ao longo de todos esses anos, nenhum desses edifícios [do Complexo] foi alvo desse interesse. Nem o Conpresp [órgão municipal de tombamento] ou o Iphan [federal] manifestaram qualquer interesse. De repente, de uma hora para outra, aparece um interesse? Na situação calamitosa que se encontra?”, questiona.

EM NÚMEROS

Segundo o governo, o endereço de 105 340 metros quadrados tem dado prejuízos. Em 2018, teve receita de 2,7 milhões e despesas de 13,5 milhões de reais. Já 2019 melhorou o desempenho, com 7,4 milhões de receita, mas ainda com 13 milhões de gastos.  

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“O problema também é o descaso do governo. O [João] Doria tem a mania do abandono para a privatização de tudo”, diz Renato Pera, presidente da Federação Paulista de Volleyball, que também assinou a carta que aponta os problemas do Complexo. 

Pera explica que assinou o documento pela possibilidade da construção de uma nova arena. “Mas o ideal seria o governo abrir um projeto de incentivo para a iniciativa privada fazer uma instalação com recursos próprios enquanto faz a demolição”, defende. 

“Eu vi as postagens dizendo que o Ibirapuera está de luto. E aí pensei: será que está de luto ou já está assim faz tempo?”, questiona Magic Paula. “Vejo muita gente postando a foto por puro saudosismo. Mas a gente tem que olhar em uma perspectiva lá na frente”, diz.

Para a ex-jogadora, a gestão dos espaços deve ir para a iniciativa privada. “O estado não coloca gestores capacitados. Vira barganha política. E hoje esporte virou negócio. Estamos com a cabeça de 1980 quando ginásio era o máximo. Agora quem viaja pelo mundo e entra em uma arena tipo a do Miami Heat [time de basquete dos EUA], sabe o que é”.

De acordo com a Secretaria de Esportes, nenhuma confederação esportiva treina no espaço “por conta das condições estruturais ultrapassadas do local”. Atualmente, são oferecidas ali aulas gratuitas de cinco modalidades esportivas: condicionamento físico, musculação, natação, futsal e vôlei. Em 2018 e 2019, 1 400 alunos frequentaram as atividades. Deste montante, cerca de 70% mora em bairros que ficam na região (Moema, Paraíso, Ibirapuera) e 30% vem de regiões periféricas da cidade.

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91 atletas, entre esportistas amadores e profissionais, utilizaram o Complexo em 2018 e 95 em 2019. Desde o início da pandemia, nenhum atleta utiliza o espaço por conta das restrições sanitárias. A pasta informa ainda que a administração do Complexo estima que cerca de 2 000 pessoas [tirando da conta os eventos] frequentaram o local nos últimos dois anos. 

De acordo com o governo, o montante mínimo para a modernização do local é de R$ 220 milhões. Com a concessão, a gestão afirma que estima um investimento “superior a R$ 1 bilhão” por parte do novo administrador. 

Em uma carta, professores e pesquisadores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP disseram estar “extremamente preocupados” com o que a gestão tucana pretende fazer com o local.

Os urbanistas também deram origem ao movimento “S.O.S Ginásio do Ibirapuera“. O grupo conseguiu criar uma petição online com mais de 36 000 pessoas pedindo a preservação do prédio.

OSTRACISMO

“Nós não somos mais procurados por organizadores de grandes eventos. O mercado já sabe da ineficiência daquele equipamento. Tanto que nós tivemos a realização de um evento artístico no ano passado e falaram que não vão voltar mais, o Circo de Soleil”, diz o secretário de esportes.

Entre 2018 e 2019, o local recebeu em média 45 eventos esportivos e culturais a cada ano, o que corresponde a 3,75 eventos por mês. Além do Circo, citado por Aildo, também ocorreram apresentações de bandas como Weezer, Seal, Nickelback, Muse, que se apresentaram em um festival, e da dupla sertaneja Henrique e Juliano, que gravou um DVD no Ginásio. Ocorreram ainda campeonatos regionais de esportes como cross fit, futebol americano, karatê e jiu-jitsu. 

MP EM CENA

Após o Condephaat não aprovar a abertura do estudo de tombamento, o Ministério Público informou na quinta-feira (3) que pediu ao governo do estado mais informações sobre a concessão. Segundo a Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital, o órgão está “está analisando restrições legais que inviabilizariam a construção de um empreendimento multiuso, shopping center, três torres com apart hotel e escritórios e outros usos que o concessionário considerar rentáveis no local”.

 

 

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