Como pais e filhos adolescentes podem se comunicar melhor no confinamento
"A convivência ininterrupta e imposta requer flexibilidade, boa vontade e compreensão", escreve a psicóloga Verônica Cezar-Ferreira
A expressão mais usada pelos adolescentes quando algo dá errado é “deu ruim”. E, nestes tempos de confinamento em que vivemos, os mais velhos rapidamente aprenderam seu significado também.
No primeiro instante: um choque. Choque daqueles em que não se acredita muito. Um pouco depois, o ataque de rebeldia: “Eu, não. Imagine ficar sem meus amigos! Não sair de casa? Não existe. Sem chance”. Pois é, “deu ruim”. É verdade, e estamos todos vivendo em isolamento, confinados, cada qual em seu pequeno universo, literalmente. O fato é que ficou todo mundo bodeado, de tromba, de cara feia e espumando. algumas dessas expressões são de hoje; outras, de outros tempos, mas todas revelam a indignação e o inconformismo com as peças que a vida prega.
Desta vez foi coisa pra gente grande. Gente grande, mesmo, porque é preciso um limiar de frustração significativamente alto para aceitar e é preciso muita resiliência para enfrentar e superar o impacto e as perspectivas.
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E assim entraram nossos jovens no período de quarentena. Com uma agravante. Também os adultos de sua família se surpreenderam e se assustaram. Foi difícil para os próprios pais acreditar que tal calamidade estava acontecendo. Então, foi mais por impulso de preservação dos seus do que por convicção que eles seguraram os meninos em casa. Meninos e meninas, é claro, pois, quando digo meninos, falo, em bom português, deles e delas.
No início, muita confusão; no início, muita pasmaceira. Em seguida, rebeldia, grosseria, malcriação, arrogância. “Comigo, não. imagine, eu.” Depois, o começo da queda na realidade, o olhar baixo, a vontade de chorar, a sensação de se deprimir. As conversas meio truncadas entre pais e filhos. Serviços domésticos nunca antes executados. Ter de arrumar o quarto, pôr ou tirar a mesa. Mas faz mais de quarenta dias que “deu ruim”, e isso não ajuda em nada em termos de equilíbrio emocional.
Um pouco de conversas virtuais com os amigos ajudou. As aulas, no início, tão estranhas, passaram a fazer parte da vida. Aquelas horas infindáveis diante do celular, do computador e da televisão já não satisfaziam. O excesso de notícias só piorava. Tudo muito bom enquanto elas traziam informações; porém, mais do que isso, só neurotizam. Resultado: fazia-se urgente encontrar uma nova rotina de vida, uma vez que não se vive sem rotina, ainda que ela seja caótica. O próprio caos é uma forma de organização.
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Quarenta dias depois, quanta mudança! As pessoas realmente se preocupando umas com as outras; o lavar excessivo de mãos, até então sintoma primário de TOC (transtorno obsessivo compulsivo), virou norma básica de comportamento saudável e preventivo contra o inimigo implacável (o coronavírus). Os pais passaram a ser bons companheiros aos olhos dos filhos; os filhos, idem, aos olhos dos pais, já não mais vistos como tão aborrecentes. Conversas virtuais com os avós foram incluídas, não apenas como fruto de recomendação, mas para, efetivamente, estar com eles.
Consequência: as transformações que atingiram a natureza, que deixaram o céu mais azul, que trouxeram mais peixes aos rios e tartarugas às praias, que tiraram multidões desenfreadas das ruas, que causaram tanto medo diante do novo vêm transformando também as relações humanas e afetando, diretamente, as familiares.
Que bom para quem já consegue conversar! E fazer pequenos arranjos de convivência! Que bom para quem redescobriu a delícia dos jogos de tabuleiro! E a respeitar a privacidade alheia dentro de casa! E a aceitar que o outro é diferente de si, e sempre foi.
Nem sempre é assim.
Raras vezes podemos usar a expressão “é verdade”, por ser ela fruto de sentimentos, percepções e crenças individuais. Nesta inusitada quarentena, no entanto, é verdade que todos estamos impactados, o que eleva o nível de ansiedade e pode exacerbar a agressividade. É hora de ter calma. Da parte de vocês, filhos, tentar lembrar que seus pais não são culpados de nada. Então, é bom evitar grosseria, evitar extravasar a ira com portas batidas, raivosamente, com sujeira espalhada pela casa, esquecendo que sua aparente prisão, no momento, é seu abrigo mais seguro. Da parte de vocês, pais, a mesma disponibilidade, evitando manifestações agressivas, mas sendo assertivos, sem medo de estabelecer limites, de dizer sim e não de maneira adequada, sem exagerar na dose, o que nada mais seria que uma forma de expressão da própria angústia, legitimada por um indesejável autoritarismo.
A convivência ininterrupta e imposta requer flexibilidade, boa vontade e compreensão da parte de todos os conviventes, sem esquecer que a hierarquia não dá tréguas e que quem age com autoridade não precisa, nunca, ser autoritário.
Se você ainda não conseguiu alcançar esse estágio, não desanime. Esforce-se. Você pode. É nisso que temos de acreditar. E, se não conseguir sozinho, saiba que há muita gente disposta a ajudar.
Ninguém é aquela maravilha que descrevi um pouco antes neste texto, mas somos gente e, por isso, pensamos e podemos tentar melhorar.
Ufa! “Deu ruim” e não está nada tão bem, ainda. Mas já que é o que está aí, se é o que temos para hoje, que tal tentar mudar o olhar, por difícil que seja, e usar outra das expressões dos nossos jovens e reaprender a viver? “De boa!”
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Estamos vivendo uma experiência horrível. Em minha longa vida, seguramente, a mais terrificante em termos sociais globais: uma hecatombe universal.
O adolescente, de seu lado, experimenta a difícil travessia da infância para a vida adulta. Ele é muito frágil e se desestabiliza com facilidade. Necessita que lhe demos norte e que fixemos limites claros a fim de ajudá-lo a conter os impulsos desafiantes, para impedir que se machuque além do inevitável. Daí, a leveza que busquei imprimir neste texto, uma metáfora de aproximação de gerações pela linguagem.
Cada família encontrará sua forma de agir, mas uma coisa é certa: nosso adolescente precisa de nós: de nosso afeto, nosso acolhimento, nossa força, nosso equilíbrio emocional e nossa condução. Precisa e precisará muito. Ele tem essa necessidade sempre, mas, de modo peculiar, nestes tempos de confinamento.
Verônica Cezar-Ferreira é advogada e psicóloga. Psicoterapeuta individual, de casal e de família, perita e consultora psicojurídica. Diretora de relações interdisciplinares da Associação de Direito de Família e das Sucessões (Adfas)
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 20 de maio de 2020, edição nº 2687