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Coisas nossas

Vamos brincar um pouco com a linguagem. Outro dia, naquela hora neutra entre um biscoitinho e o jantar, ouvi uma senhora cozinheira na televisão dizer algo como “agora eu venho com o meu molho”, e antes já havia chamado a berinjela da receita de “a minha berinjela”. Ora. Tomamos muitas liberdades com os possessivos “meu”, […]

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 19h45 - Publicado em 18 set 2009, 20h18
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    Vamos brincar um pouco com a linguagem. Outro dia, naquela hora neutra entre um biscoitinho e o jantar, ouvi uma senhora cozinheira na televisão dizer algo como “agora eu venho com o meu molho”, e antes já havia chamado a berinjela da receita de “a minha berinjela”. Ora.

    Tomamos muitas liberdades com os possessivos “meu”, “minha”, “nossos”. Somos, é verdade, uma espécie possessiva; em numerosas línguas, pronomes designam as mesmas posses.

    A começar pelas coisas que são efetivamente nossas: meu braço, meu nariz, minhas pernas, minha cabeça. São partes de nós. Que às vezes doa-mos, poeticamente: “meu coração é teu”. Tirante a poesia, são posses reais.

    Mas possuímos também abstrações íntimas: minha alma, minhas idéias, meu pensamento, minha razão, minha liberdade.

    Muitas vezes usamos alguns abstratos para marcar uma diferença a nosso favor, para nos colocarmos como melhores do que outros numa comparação. É quando brandimos: “a minha ética”, “o meu estilo”, “os meus princípios” e – por que não? – “o meu amor”.

    A linguagem da posse se estende a coisas que estão fora de nós, mas de que temos posse por direito de compra ou de conquista: meu carro, meu dinheiro, minha casa, minhas terras.

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    Designa as pertenças ideológicas e nacionais: minha pátria, meu país, minha cidade, meu estado, nossas cores, nosso hino.

    Tem diferenças: o general diz “meu exército”; o governante diz “meu povo”; o político diz “meus amigos”, “meus companheiros”, dirigindo-se a pessoas que não são nem amigos nem companheiros. O soldado diz “meu pelotão”, mas quem pertence ao pelotão é ele, o pelotão é do capitão.

    O torcedor de futebol torna-se dono: meu time. É dele por estima e paixão, daí que ele se dá ao direito de xingar, exigir, atirar coisas em seus representantes, cobrar, incorporar, usar seu uniforme.

    Sim, o afeto nos torna donos: minha namorada, minha amada, minha mulher, meu marido, meu filho – e aqui o afeto não esconde uns conteúdos de domínio.

    Na televisão é comum ouvir: “os nossos comerciais, por favor” – mas os comerciais são de todos, estão em todos os canais, não só naquele que estamos vendo no momento.

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    Em meio a tantas posses e apropriações, há coisas muito nossas que recusamos: os defeitos. Aí são os outros que dizem que é nosso o que não queremos. Não colocamos o possessivo “meu” antes de atributos que não reconhecemos em nós, como o mau gosto, a má-educação, a grosseria, a falsidade, a desonestidade, a incompetência. Jamais uma frase assim é formulada: “a minha falsidade impede que as pessoas gostem de mim”; “ganho menos por causa da minha incompetência”, “minha estupidez me causa problemas de relacionamento”. Essas são sempre coisas dos outros, aqui economizamos possessivos.

    Desenvolvemos a capacidade de relativizar a incapacidade. Às vezes, até para fazer charme, delimitamos um campo para a nossa incompetência, relacio-nando-a a uma ativi-dade que de modo algum nos prejudica ou faz falta, como a “minha incapacidade para aprender matemá-tica”, ou “minha incompetência para cozinhar”.

    Em outros momentos, usamos o possessivo designando coisas que não são absolutamente nossas. É o que os cozinheiros da televisão fazem com seus ingredientes: “Ponho o meu sal”, “acrescento as minhas batatas”. Nós nos apropriamos das pessoas que nos prestam serviço: meu médico, minha cliente, meu personal trainer, meu professor, meu motorista, meu jardineiro, meu contador.

    Também nos apropriamos de quem nos dá atenção, mesmo que momentânea: meus ouvintes, nossos telespectadores. É o que faço neste momento, chamando você, que me lê, de meu leitor.

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