Os personagens por trás da derrocada da Cinemateca de 2013 para cá
Um dos galpões, na Vila Leopoldina, guardava mais de 2 000 películas e centenas de documentos e pegou fogo no último dia 29
Uma cena insólita se passou na esquina do galpão da Cinemateca Brasileira, na Vila Leopoldina, durante o incêndio do último dia 29 no local, que guardava mais de 2 000 películas e centenas de documentos. Atrás de uma fita de isolamento policial, um grupo de ex-funcionários, demitidos em agosto de 2020 após ficar meses sem salários, insistia em ajudar os bombeiros na ação.
Era um triste resumo dos últimos anos no acervo: enquanto uns poucos abnegados reclamavam por soluções, a Cinemateca era consumida por uma crise com protagonistas no mundo da política — e que está longe do fim. Os problemas na Cinemateca começaram em 2013, quando Marta Suplicy era ministra da Cultura do governo Dilma Rousseff (PT). O acervo vivia tempos de fartura.
Administrado pela Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC), tinha um orçamento que passava de 50 milhões de reais, boa parte captada junto a empresas — o “atual”, entre aspas porque não é pago desde a metade de 2019, era de 13 milhões. Alertada de supostos erros em prestações de contas da SAC, Marta deu aval a uma investigação sobre a organização, decisão que suscita críticas: a SAC ficou impedida de captar recursos e, em alguns meses, a Cinemateca precisou demitir a maior parte do corpo técnico. Nunca voltaria a ter aquele patamar de receitas. Até hoje, nenhuma irregularidade ficou comprovada. “Havia como investigar sem inviabilizar a Cinemateca”, diz André Sturm, ex-secretário de Cultura de São Paulo.
“A Controladoria-Geral da União apontava graves irregularidades na parceria. Marta garantiu o custeio da estrutura e manteve diálogo com o conselho da Cinemateca”, diz a assessoria da ex-ministra, em nota. Sob Jair Bolsonaro (sem partido), o que era uma crise financeira virou o abandono quase completo do maior acervo audiovisual da América Latina. Em 2019, Abraham Weintraub, então ministro da Educação, decidiu romper um contrato do governo com a Fundação Roquette Pinto.
A organização tinha vencido uma concorrência e deveria gerir a Cinemateca até 2021 — esse serviço, porém, estava inserido no mesmo contrato que o ex-ministro insistia em quebrar. A Vejinha revelou que Weintraub foi alertado pelos próprios ministérios da Economia e da Cidadania de que a ruptura deixaria a Cinemateca sem gerenciamento nem repasse de verbas, um risco ao acervo. Não deu ouvidos. O financiamento parou e a instituição passou a atrasar salários e contas de serviços básicos, como energia elétrica. O Ministério Público moveu uma ação que acusava o governo de abandonar o órgão cultural.
A juíza Ana Lúcia Petri Betto, porém, entendeu que não era o caso de se exigir medidas emergenciais, por ter “informações de tomada de providência pela União”, conforme a sentença. Na atual gestão federal, uma infindável ciranda na Secretaria Especial da Cultura (Secult) — que teve seis titulares e ficou um ano e meio “de mudança” entre dois ministérios — inviabilizou as negociações para uma nova organização social gerir o acervo. “É impraticável uma gestão direta pelo governo, que não tem agilidade ou conhecimento técnico para isso”, diz Sturm, que participou dessas tratativas ao ser chamado para o gabinete do ex-secretário Roberto Alvim, onde não chegou a tomar posse.
Em agosto de 2020, assessores da Secult, escoltados por policiais, tomaram as chaves da Cinemateca e prometeram contratar novos gestores. A instituição passou um ano sem funcionários especializados. Na sexta (30), um dia após o incêndio, o governo enfim publicou um novo edital para contratar uma organização para geri-la. “Não entraremos na concorrência. O orçamento (10 milhões) ficou ainda menor e nem sequer paga as contas”, diz Francisco Campera, diretor da Roquette Pinto. “É preciso fazer obras para prevenir outro incêndio. A sede da Vila Clementino corre risco”, completa. Procurados, Weintraub e a Secult não falaram à reportagem.
CRÔNICA DE UM DESASTRE ANUNCIADO
A investigação de Marta Suplicy – 2013
A então ministra da Cultura deu aval a uma investigação sobre a SAC, que geria a Cinemateca. A SAC ficou impedida de captar recursos, iniciando a crise financeira do acervo. Nada ficou provado.
A insistência de Abraham Weintraub – dezembro de 2019
O ex-ministro da Educação rompeu um contrato do governo com a Roquette Pinto, então gestora da Cinemateca. Foi alertado por dois ministérios de que isso deixaria o acervo sem gestão. Insistiu na ideia.
O vídeo de Roberto Alvim – janeiro de 2020
A Secretaria Especial da Cultura (Secult) se aproximou de um acordo com a Roquette Pinto na gestão de Roberto Alvim. O ex-secretário, porém, acabou implodido por um vídeo com citações nazistas.
A não gestão de Regina Duarte – maio de 2020
Após uma passagem-relâmpago pela Secult, a atriz anunciou ter recebido a Cinemateca como um “presente” de Bolsonaro. Esqueceram-se de que a chefia do acervo não é um cargo público.
Mário Frias e a “estatal fantasma” – agosto de 2020
O ex-ator de Malhação retomou as chaves do acervo, prometendo contratar novos gestores. Desde então, não há técnicos no local, o que poderia ter evitado o fogo.
A decisão de Ana Lúcia Petri Betto – agosto de 2020
O MPF acusou o governo de abandono do acervo. A juíza federal indeferiu a ação: “Não há razão para medidas coercitivas, já que há informação de tomada de providência pela União”.
A pane final – julho de 2021
No dia 29, uma empresa contratada pelo governo fazia reparos no arcondicionado quando começou o incêndio que queimou parte do acervo de filmes e documentos da Cinemateca, em São Paulo.
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Publicado em VEJA São Paulo de 11 de agosto de 2021, edição nº 2750