Cine Marabá é reaberto
Lendário palácio do cinema de 1945, tem cinco salas totalmente restauradas
No próximo sábado (30), São Paulo vai testemunhar um duplo renascimento. O primeiro – pleno – é o do Cine Marabá, na Avenida Ipiranga, um dos mais importantes palácios cinematográficos do centro, que será reinaugurado em formato multiplex (aquele em que um conjunto de salas de exibição com bilheteria centralizada divide a área de espera, banheiros e bonbonnière). O segundo – ainda que parcial e simbólico – é o da própria Cinelândia paulistana, como ficou conhecida a região que nas décadas de 40 e 50 concentrava mais de trinta cinemas tão elegantes quanto confortáveis. A única sala do Marabá, inicialmente com 1 655 poltronas, foi dividida em cinco – a maior com 430 lugares e a menor com 122. É um sinal dos tempos. Foram-se os dias em que os cinemões abrigavam mais de 1 000 pessoas sob o mesmo teto para ver os musicais da Metro ou os épicos bíblicos de Cecil B. DeMille.
Mesmo adaptado à nova realidade, o Marabá não perdeu seu charme. Por ser um prédio tombado desde 1992, sua fachada, o saguão e os detalhes decorativos da sala principal passaram por um exaustivo trabalho de restauração. A presidente da PlayArte, empresa dona de outras 23 salas na capital, a exuberante Elda Bettin Coltro, com seu figurino em technicolor, comprou o cinema em 1996. Dois anos depois, contratou o arquiteto Ruy Ohtake, autor do projeto atual. “Só para a ideia ser aprovada pela prefeitura foram necessários três anos de negociações”, lembra Ohtake.
Inaugurado em 1945 com o drama Desde que Partiste, o Marabá passou por altos e baixos, que coincidiram com a ascensão e a decadência das salas paulistanas. A empreitada de construir um novo “palácio” em frente ao gigante Ipiranga (com 1 832 lugares) partiu do empresário Paulo Sá Pinto (1912-1991). “Era famoso o grupo de senhoras dos Jardins que, todas as quartas-feiras, desciam do bonde na Avenida São João e iam assistir, de chapéu, à sessão das 16 horas no Marabá”, lembra o professor de cinema da Faap Máximo Barro. Um ano depois da abertura, ele já era a décima sala com maior público na cidade. Em 1957, com 1,7 milhão de espectadores, ficou atrás apenas do Art-Palácio. Para efeito de comparação, a PlayArte teve um público de 1,1 milhão de pessoas no ano passado na cidade. “Em seu auge, o Marabá fazia mais de 50 000 espectadores por semana”, conta Francisco Lucas, que, a partir dos anos 60, se tornou sócio de Paulo Sá Pinto. “Lotava até às segundas-feiras.” Em seus últimos anos, no entanto, o cinema estava bastante decadente. No teto havia goteiras, diversas poltronas estavam rasgadas e as bilheterias eram inexpressivas. Em 16 de agosto de 2007, apenas nove pessoas acompanharam sua última sessão, que exibia Duro de Matar 4.0, com Bruce Willis. O fato é relembrado pelo jornalista Julio Simões nas páginas de “Marabá – O cinema do coração de São Paulo”, trabalho de conclusão de curso que ele pretende transformar em livro.
Mais de oitenta profissionais das equipes de Ruy Ohtake e do restaurador Samuel Kruchin envolveram-se na revitalização, que custou 8 milhões de reais e durou nove meses. Quatro técnicos do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) revezavam-se em vistorias quinzenais. “Nenhum detalhe poderia escapar ao projeto original”, afirma a arquiteta da prefeitura Lícia de Oliveira. No saguão, as luminárias e o lustre de cristal são os mesmos que iluminavam as concorridas soirées da década de 50, quando as mulheres não passavam pelas catracas sem luvas e homens trajavam paletó e gravata. O piso do hall, coberto por um granito deteriorado, voltou a ter o mesmo mosaico de parquê da época da inauguração. Vidros e ornamentos da fachada foram recuperados; os mármores, polidos; o couro das portas, refeito; e os desenhos dos espelhos, reconstituídos. “Removemos doze camadas de tinta das colunas do hall para chegar à cor bege original”, diz Kruchin. Placas de madeira e estruturas metálicas retiradas da sala principal deixaram à mostra desenhos que adornavam a boca de cena.
Em um primeiro momento, a nostalgia deve ser a principal razão de o espectador visitar o mais novo cinema da cidade. A programação em nada se diferenciará da de outros complexos paulistanos. Para sábado estão previstos os lançamentos do show da banda Jonas Brothers em 3D e da aventura Uma Noite no Museu 2. Elda e seu filho, Otelo Bettin Coltro, vice-presidente da PlayArte, acreditam que os frequentadores virão não só da região central, mas de bairros que sejam atendidos pelo metrô – a estação mais próxima, República, fica a cerca de 300 metros. Eles ainda negociam convênios com estacionamentos próximos e a implantação de um sistema de valet.
Na época de ouro do Marabá, produtores e exibidores ficavam de olho em suas filas. Se elas dobravam o quarteirão na semana da estreia, era sinal de que a fita teria boas bilheterias no Brasil inteiro. A televisão estava engatinhando e os cinemas se espalhavam pela cidade em número recorde – havia quase 200 entre as décadas de 50 e 60. “Era praticamente o único contato com o mundo que tínhamos naquela época”, diz o historiador Inimá Simões, autor do livro Salas de Cinema em São Paulo, publicado em 1990. No centro concentravam-se as salas mais luxuosas, responsáveis por lançar os filmes badalados (no Ipiranga, um pianista tocava antes das sessões e o acesso aos lugares mais caros, chamados de pullman, era por elevador com ascensorista). A maior parte dos cinemas, contudo, ficava nos bairros, com ingressos mais baratos, algumas reprises e tamanhos, em certos casos, mais superlativos. “Gostava de frequentar o Piratininga, no Brás, com 4 300 lugares”, lembra Luiz Gonzaga, pesquisador da Cinemateca. “Lá, tinha programa duplo. As pessoas iam para ver um filme mais recente e, em seguida, outro um pouco mais antigo.”
Igualmente farto era o número de produções em cartaz. Um levantamento de seis décadas nos arquivos do jornal Folha de S.Paulo mostra que no segundo sábado de abril de 1959 havia 172 títulos em exibição. Neste ano, eram cinquenta. Crítico de O Estado de S. Paulo nos anos 60, Alfredo Sternheim recorda que havia em média doze estreias semanais naquela época. “Só de filmes japoneses, com exibição garantida no Jóia, no Niterói e em outros cinemas da Liberdade, eram três ou quatro novidades por semana”, afirma. A popularização da TV, a partir de meados da década de 60, provocou uma debandada de público e os exibidores tiveram de buscar alternativas. Aos poucos, o circuito migrou para a Avenida Paulista, com a inauguração de salas nobres como Astor, Bristol e Liberty. Ainda em 1968, foi aberto o primeiro cinema de shopping, no Iguatemi. Salas outrora refinadas, como o Marrocos, foram divididas e passaram a exibir filmes de artes marciais e pornochanchadas. O Comodoro, na Avenida São João, também de propriedade de Paulo Sá Pinto, marcou época com a exibição em Cinerama, sistema em que três projetores funcionavam simultaneamente, e, em 1974, causou barulho com a projeção no sistema “sensurround” para o filme-catástrofe Terremoto.
A decadência dos cinemas do centro começou na década de 80, quando o video-cassete chegou aos lares e o erotismo sugerido virou pornografia. Muitas salas gigantes foram transformadas em templos evangélicos, bingos ou estacionamentos. No fim dos anos 90, esse painel dramático mudou. Em 1997, a rede americana Cinemark abriu na cidade seu primeiro complexo, no Shopping Metrô Tatuapé. Embora ainda se encontrassem aos montes salas com poltronas quebradas, ar-condicionado “em manutenção” e sistema de projeção jurássico, inaugurava-se aí uma nova era do cinema-pipoca. “O Cinemark chegou em um momento em que o público não aguentava mais salas cheirando a mofo”, afirma Leon Cakoff, organizador da Mostra Internacional e um dos sócios dos cinemas nos shoppings Frei Caneca e Bourbon Pompeia. Quem não se enquadrou às novas exigências do espectador fechou. A própria PlayArte encerrou recentemente as atividades nos shoppings Iguatemi e Market Place, dominados pela Cinemark. “Agora vamos esperar para ver como será a reação no Shopping Paulista”, diz Otelo Bettin Coltro, que tem duas salas ali. Nas próximas semanas, a Cinemark (ela de novo) abre no mesmo centro de compras seu novo multiplex, com sete salas. O contra-ataque da família Coltro será com dez salas no Shopping Ibirapuera, prometidas para 2010.
Atualmente, o número de poltronas na cidade (58 257) nem de longe é páreo para os 228 973 lugares de cinquenta anos atrás. Já a oferta de salas (menorzinhas, claro) pulou de 154 em 1959 para as 263 de hoje. Com a concorrência cada vez maior da internet, das TVs abertas e por assinatura, dos videogames, dos DVDs e da pirataria, os cinemas, como sempre, estão à procura de alternativas. Luxo, mimos e poltronas ultraconfortáveis fazem o sucesso nas duas salas premier do Shopping Cidade Jardim (ao custo de até 46 reais por ingresso). A sala Imax, com a maior tela de São Paulo e projeção em 70 milímetros, mantém uma ocupação de 90% nos fins de semana desde sua abertura, em janeiro. E não se podem esquecer as salas 3D, que, em menos de um ano, tiveram uma fenomenal escalada. Eram quatro em julho do ano passado, agora são dezessete.
Há quem aposte que o próximo passo do setor seja mesmo em direção à Cinelândia. O secretário municipal de Cultura, Carlos Augusto Calil, diz que a prefeitura tem planos de transformar outros cinemões do centro, como o Art-Palácio, o Pais-sandu e o Marrocos, todos tombados, em salas culturais. “Precisamos descobrir a vocação de cada cinema e buscar o apoio da iniciativa privada”, diz. A Cinemark, que já “paquerou” o Marrocos, não descarta a possibilidade. “Vamos esperar para ver o desempenho do Marabá”, afirma o presidente da rede, Marcelo Bertini.