Carta a vocês sabem quem

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 18h23 - Publicado em 17 dez 2010, 18h28

Querido velhinho. Há muito tempo não me sinto merecedor. A pior espera é daquele que não se julga merecedor, porque isso não lhe assegura o presente nem o livra da frustração. Como diz a canção antiga, o velhinho sabe quem foi bom ou ruim, por isso seja bom para merecer a bondade.

Não que eu tenha sido ruim durante o ano. Não fui. Acordo cedo, trabalho. Dou bom-dia às pessoas, de cara boa. Não me aproveito das vagas dos incapacitados nos estacionamentos. Cedo o último lugar nos elevadores, mesmo para os mais jovens, pois sei que eles têm pressa, psicológica que seja, e não é por isso que a pressa será outra coisa. Não aperto as frutas na feira. Não tripudio sobre os vencidos no jogo, seja de buraco, seja de futebol. Abaixo o som à noite, atento aos vizinhos. Não buzino para os morosos no trânsito. Não escolho o maior pedaço do bolo. Sempre escutei o que minha mãe dizia: não falo palavrão, não mexo no que é dos outros, não deixo sobrar comida no prato.

Também não fui daqueles bons que namoram a santidade, ai, não. Ajudo se posso, mas sem muita pressa. Sou caloroso nos encontros com as pessoas, parentes, amigos, mas não vivo telefonando. Dou o que me sobra, mas não em dinheiro. Evito punir, prefiro premiar, porque punições exigem mais critério ou provocam remorsos, e prêmios são mais bem recebidos. Acho mesmo que a minha bondade se restringe a não fazer maldades. O que não faz de mim um merecedor.

É o caso de perguntar: por que esperar, se não há merecimento? Diriam: só deveria esperar aquele que merece. Não é bem assim. Porque nossos defeitos não nos tiram a humanidade — e os homens sempre esperaram: um messias, um milagre, uma melhora, um presente, um gol salvador, um beijo, a condução, a sorte grande, um bom descanso. A espera nos situa no tempo e nos entrega ao que virá, angustiados ou confiantes. Desde pequenos, a espera de um presente no fim do ano nos leva a meditar: eu mereço?

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A cada um de acordo com a sua necessidade — esse é um preceito que atravessa milênios. Seria bom se os faltos de juízo ganhassem sensatez; se os ávidos por justiça fossem saciados; se as precisadas de marido fossem atendidas; se os que vivem no escuro recebessem luz. Não há de tudo para todos, daí a dúvida dos que se preocupam: terei merecido? Será esse o critério, merecimento?

Os pais das crianças não fazem distinção entre os que merecem e os que não fizeram por merecer, porque não há distinção no amor. Amam igualmente os bonzinhos e os levados, frutos dos seus acertos e desacertos. Há os que perdoam a filhos imperdoáveis. Filhos que não querem saber se merecem esperam sempre confiantes, nada temem, e para eles tudo é pouco. Já os não arrogantes e os não mimados esperamos na incerteza: terei merecido?

Caro velhinho, escrevi-lhe cartas quando ainda era menino. Noto que o senhor não mudou nada, mas eu — quem me dera. Fui sempre atendido, talvez porque meu horizonte de desejos fosse modesto. Nem sabíamos o que desejar, pois as sugestões de um mundo sem televisão não iam muito além da espingardinha de rolha ou do boneco de celuloide da vendinha da esquina. Continuo desejando pouca coisa. Não espero mais do que um bom Natal com meus amores — e isso eu sei que mereço.

 

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