Paulistanos lotam reserva de destinos turísticos, que têm de se reinventar
Setor precisa criar outros produtos e corrigir velhas deficiências para oferecer uma experiência melhor
Das praias do Litoral Norte às montanhas da Mantiqueira, dos hotéis-fazenda de luxo aos parques aquáticos do interior, dos refúgios descolados às cachoeiras de Brotas os relatos são semelhantes: recordes de demanda, reservas esgotadas, filas de espera por um quarto. “Dois perfis de paulistanos estão fazendo os destinos próximos à capital bombar”, diz Ricardo Freire, do site Viaje na Viagem e responsável por uma pesquisa sobre o atual fluxo de via- jantes no país. “Um deles são aqueles que trocam de CEP durante a quarentena, para fazer o home office em um lugar agradável. O outro são — e serão — os ‘desconfinados’. Aqueles que, à medida que as cidades reabrem, procuram um escape após o desgastante período de isolamento”, ele explica.
“Tenho feito muitos calls com o setor. Tudo que está em um raio de 400 quilômetros de São Paulo — ou seja, pode-se ir de carro — e tem opções ao ar livre vai viver uma retomada”, diz Caio Carvalho, ex-presidente da Embratur e ex-ministro do Esporte e Turismo (2002). “É um momento para o setor se sofisticar, criar produtos e corrigir problemas”, ele afirma.
A Vejinha visitou destinos que servirão de escape para os paulistanos. Encontrou, sim, os tais problemas — e conversou com especialistas para apontar soluções.
80% dos turistas cancelaram ou adiaram viagens, mais de 60% delas para o exterior, diz pesquisa do especialista Ricardo Freire
O ponto de partida de qualquer jornada, claro, será a segurança para a saúde e o cumprimento das normas de quarentena. No momento, todos os lugares destacados na reportagem permitem visita, mas com limitações da capacidade. “O importante é mostrar compromisso com os protocolos”, diz Freire. “Até para atrair os bons turistas — e afastar os ruins”, completa.
REPAROS NO LITORAL NORTE
As fascinantes paisagens do Litoral Norte paulista, às vezes, ofuscam novos e antigos problemas. Desde que começou a ser mais frequentada, nos anos 70, a fileira de praias que vai da Jureia a Maresias (em São Sebastião) foi quase totalmente esquadrinhada em lotes, sem planejamento urbanístico mais ambicioso. O resultado: ao longo de 30 quilômetros de uma costa com cenários privilegiadíssimos, praticamente não existem restaurantes à beira-mar, ou mesmo praças, calçadões e espaços públicos com vista para o Atlântico. “É bom para meia dúzia, mas nem se compara à experiência de destinos como Portugal ou Grécia”, diz a arquiteta Patrícia Anastassiadis, responsável por diversos hotéis de luxo pelo mundo. “Além disso, não se valorizam produtos locais. Fui a um resort de luxo em Veneza, por exemplo, e o creme do banheiro era feito no presídio. Aqui, as pousadas não dão a mínima para os índios da região.” Para não falar nas intermináveis obras que aliviariam o trânsito, como a duplicação da Tamoios, adiada para 2022.
PROTEÇÃO E EQUILÍBRIO NA MANTIQUEIRA
1.900 reais é quanto custa a diária mais barata
Na Serra da Mantiqueira, a procura por acomodações também disparou nas últimas semanas. “A demanda está mais forte que em agosto passado”, diz Clodomiro Junior, prefeito de Santo Antônio do Pinhal, um dos principais municípios da região. “A maioria das pessoas busca um home office nas montanhas. A primeira pergunta não é mais se a casa tem lareira, mas sinal de internet.”
Longe das ruas abarrotadas de caminhonetes de Campos do Jordão, as áreas mais preservadas saíram na frente nessa retomada. “Estamos lotados até durante a semana”, diz Fernanda Ralston-Semler, proprietária do Botanique, onde a diária mais barata custa 1.900 reais. “Campos atraiu um turismo predatório e cuidou mal das fontes de água. Aqui, sempre acreditamos que o luxo está nos recursos naturais”, ela afirma — o hotel fica entre a cidade e as vizinhas Pinhal e São Bento do Sapucaí. “Tenho recebido quinze pedidos de eventos por dia.”
70% do faturamento de Santo Antônio do Pinhal acontece entre maio e agosto. “É preciso reduzir a sazonalidade”, diz o prefeito
Para garantir uma renda sustentável, porém, esses municípios precisam equilibrar melhor as estações. “No mínimo 70% do faturamento da cidade acontece entre maio e agosto”, explica Junior. Para o prefeito, a solução seria integrar turisticamente os municípios. “No Sul, as pessoas vão ‘para a Serra Gaúcha’, ou ‘para a Serra Catarinense’. Precisamos criar uma rota da Mantiqueira”, ele diz. “A região não se organizou e não conseguiu mostrar suas riquezas.” Além disso, Pinhal ainda elabora um Plano Diretor — e nem sequer existe uma discussão para um Código de Obras. Quem aposta em propostas mais elaboradas e contemporâneas aproveita a retomada. “Tenho negado pedidos de reserva até a amigos”, diz Célia Carbonari, da Vinícola Santa Maria, aberta em 2018 em São Bento do Sapucaí. O refúgio tem vinhos de qualidade e arquitetura discreta. “A obra não pode ser maior que o verde.”
LUXO EM XEQUE
25 quartos em operação: no vermelho
Os hotéis-fazenda e as pousadas de luxo têm enfrentado um dilema na reabertura. “Temos fila de espera, mas as contas não fecham”, diz Deborah Almeida Prado, proprietária da Fazenda Capoava, na região de Itu. O problema: como é comum no chamado “circuito de charme”, a hospedagem tem um número pequeno de quartos. No caso, das 36 suítes, apenas 25 puderam voltar a funcionar. “Ainda não equilibrou os investimentos para minimizar a contaminação”, ela explica. Os hóspedes usam os quartos como home office”, diz Edson Junior, gerente do Ronco do Bugio, em Piedade. O “confinamento”, por sinal, não chega a ser novidade nesse circuito. “A cidade não tem tantas atrações. O hotel acaba sendo o passeio”, conta Fábio Fagosi, dono da Confraria Colonial, em Mairinque. “A procura pelos dias de semana subiu 200% em relação a agosto passado. Aumentamos um pouco a diária para investir nos protocolos de saúde”, ele diz.
“AMAZÔNIA” SEM CONFORTO A NOVENTA MINUTOS DA CAPITAL
Dona da segunda maior bacia hidrográfica de São Paulo, Itanhaém, no litoral sul, tem 2.000 quilômetros de rios, dos quais 180 são navegáveis. Conhecida como a Amazônia paulista, a região concentra grande diversidade de peixes, fauna e flora e é destino para quem quer contato com a natureza, mas aquele “raiz”, com a mínima estrutura. Apesar do entorno exuberante, a maioria dos mais de 500.000 turistas que visitam a cidade a cada verão prefere as areias grossas das praias aos passeios de barco pelas águas dos rios Preto e Branco.
180 km de rios navegáveis
A viagem a bordo de um barco de alumínio com motor de popa movido a gasolina é sinônimo de conforto zero, mas a paisagem compensa. A Vejinha passou por lá na quinta-feira (13) e percorreu por seis horas as águas sinuosas do Preto. O passeio para três pessoas custa 500 reais. Logo na saída, a partir do centro, um píer recém-construído fica para trás e as primeiras imagens são de construções abandonadas, obras que pararam pela metade e alguns restaurantes que oferecem comida e bebida em prainhas que aparecem pelo caminho.
Barqueiro de 58 anos, dos quais 35 deles passando praticamente todos os dias para pescar, acampar ou para levar observadores de orquídeas, bromélias e pássaros, José Aparecido de Jesus, o Zé, defende a criação de parques como forma de atrair turistas. “Os prefeitos só têm olhos para as praias e esquecem dos nossos rios. Eles poderiam pegar uma das dezenas de casas abandonadas no meio do mato e construir parques com ponto de observação de animais, como onças e sucuris.”
A pesca também atrai turistas, mas uma das queixas é a diminuição de peixes nos rios. Morador de uma ilha que foi no passado uma tribo indígena e hoje possui cerca de trinta casas, Odair Antonio da Silva, 58, neto de índios, precisou mudar de profissão para poder sustentar a família. “Foi ficando cada vez mais difícil pescar e resolvi começar com um quiosque.” Fora da temporada, o lugar permanece aberto, mas as encomendas de refeições precisam ser feitas com três horas de antecedência. Por 90 reais é possível almoçar arroz, peixe frito, mandioca e salada de palmito (plantado e colhido no local). O prato serve três pessoas. Como o lugar fica isolado, a chegada precisa ser combinada por WhatsApp. “O cliente me liga antes, para o carro do outro lado e a gente vai buscá-lo de barco.”
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A prefeitura de Itanhaém diz que tem um projeto para repovoamento de peixes, mas não prevê a criação de parques naturais. “A ideia é levar as espécies nativas, mas é importante que a pesca predatória, com redes, continue proibida”, afirma o prefeito Marco Aurélio dos Santos.
A vantagem de passear com um barqueiro experiente (e falante) pelos rios da cidade é que ele conhece os ribeirinhos e cada parada é uma história para levar embora. A uma hora do píer, a casa de Jessé de Barros, 56, é feita com bambus. Ao lado da esposa, Adélia, e dos dois casais de perus (Barack, Michelle, Lula e Marisa), o senhor, que vive de calças e mangas compridas por causa dos mosquitos, planta mandioca, milho e feijão. “Vivo aqui por opção e há vezes que ficamos um mês sem ir à cidade”, diz Barros. Dica: vá de calça e leve repelente.
CUNHA ALÉM DA CERÂMICA
20 cachoeiras
Conhecida pela cerâmica, Cunha, entre a Serra da Bocaina e a Serra do Mar, na divisa com o Rio de Janeiro, conta com cerca de 200 pousadas. A maioria é destinada a casais que procuram sossego, só que há também um segmento que só cresce, o turismo ecológico, mas para quem prefere viajar com mais infraestrutura. A despeito de os parques ecológicos estarem fechados devido à pandemia, as cerca de vinte cachoeiras estão aptas a receber turistas, que voltaram a aparecer nas últimas duas semanas. “Os acessos são fáceis, dá para chegar de carro, sem a necessidade de veículos maiores”, diz Marcelo Henrique Veras, secretário de Turismo. Há cinco anos na cidade, o arquiteto Guilherme Mossa aluga sua casa pelo Airbnb (1.200 reais por noite, para até oito pessoas) e está construindo um chalé para aumentar a oferta. “A cidade é feia, mas o povo é lindo. Além das trilhas, a topografia da região é muito interessante. Sem falar que estamos a 50 minutos de Paraty (RJ). Se resolvemos almoçar um peixe na praia, saímos às 11 horas e antes das 15 horas estamos de volta.”
NÓ DOS PARQUES AQUÁTICOS
Fechados desde março, os parques aquáticos e de diversão só poderão voltar a operar a partir de outubro. Maior deles (e da América Latina), o Thermas dos Laranjais, em Olímpia, tem 300.000 metros quadrados de área e ganhará mais 150.000 metros de um terreno próximo. Enquanto a data de reabertura não chega, os protocolos de segurança estão sendo preparados. “Teremos distanciamento em todas as filas e capacidade de público reduzida”, diz Jorge Noronha, vice-presidente. Quando o local puder funcionar, o Thermas vai inaugurar o complexo de toboágua, de 1.200 metros quadrados, voltado para as crianças menores.
300.000 m² tem o Thermas dos Laranjais
Na mesma cidade, a pandemia não mudou os planos de Rafael Almeida, CEO do Grupo Natos. Um dos sócios do Vale dos Dinossauros, ele pretende abrir até dezembro um museu de cera, com investimento de 20 milhões de reais. A empreitada seguinte será um bar de gelo. Os dois futuros empreendimentos servirão para suprir uma demanda por atrações que não estejam ao ar livre. Se o visitante chega à cidade em um fim de semana sem tempo bom, perde o passeio, porque não há alternativas. “Quando chove, muitos turistas vão para o shopping de São José do Rio Preto (a cinquenta quilômetros)”, diz Humberto Puttini, secretário de Turismo de Olímpia.
A 71 quilômetros da capital, o parque aquático Wet’n Wild, em Itupeva, vive longa agonia. Sem demitir a maioria dos duzentos funcionários, a empresa lançou mão das medidas de corte de salários e suspensão de contratos. “Mas a partir de agosto nossa folha, de 1 milhão de reais por mês, voltou ao normal”, afirma o proprietário, Alain Baldacci. Há cinco meses sem receita (serão sete meses, caso a abertura ocorra em outubro), Baldacci prevê gastar mais 1 milhão de reais com os protocolos exigidos pelo governo do estado, como sinalização, desinfecção, testagem dos funcionários. “Por outro lado, estudos mostram que o cloro deixa a água pura, sem risco de contaminação.”
Quando reabrir, o Wet’n Wild vai lançar uma parceria inédita com o Hopi Hari, seu vizinho. Ingresso no valor de 109,90 reais, com direito a um dia de diversão em cada parque, o que pode incentivar o turista a passar mais tempo na região.
TRILHAS DESPERDIÇADAS
Dois destinos bem pertinho de São Paulo não aproveitam todo o seu potencial turístico. A Represa Billings e a Estrada Velha de Santos, em São Bernardo, são o paraíso dos esportistas, mas a falta de infraestrutura deixa o passeio com uma pegada de frustração. Enquanto uns pedalam rumo à Serra do Mar, outros correm e muitos completam o triatlo nadando no reservatório. Na hora do almoço, filas de carros se formam na rodovia, a Caminho do Mar, para aguardar a entrada nos restaurantes, algo nada prazeroso. Por falta de opções, para ter acesso às águas claras da represa (para nadar nas “prainhas” ou pescar), os turistas param na própria estrada. Uma alternativa é estacionar em um clube desativado, sem infraestrutura para receber clientes e que cobra 10 reais por integrante do automóvel.
Na mesma região, Paranapiacaba ganhou a pecha de abandonada, com a falta de conservação dos pontos turísticos e poucas opções de gastronomia para os visitantes que chegam para passar o dia. Questões de logística como horários de funcionamento dos banheiros e as trilhas que são feitas de forma clandestina são outros problemas recorrentes na área, de acordo com guias turísticos. “Para revitalização e restauros, priorizamos as atrações que mais atraem famílias”, diz o secretário do Meio Ambiente de Santo André, Fabio Picarelli. Segundo ele, já estão prontos a Torre do Relógio e Museu Castelo, por exemplo. Também foram abertas licitações de doze imóveis para receber estabelecimentos como hamburgueria, cervejaria e cantina. Sobre as trilhas, diz que são tema de discussão com os monitores. “Muitas delas passam por propriedades privadas e são perigosas, precisam de estrutura para receber turistas e evitar acidentes e até mortes.”
A NOVA AVENTURA DE BROTAS
Em 23 anos, nunca fiz tantas reservas”, comenta Rodrigo Saldanha, 46, dono do Recanto das Cachoeiras, um parque day-use em Brotas que recebe 6.000 turistas por mês no verão. (Os passeios da região acontecem em áreas privadas, que cobram em média 100 reais de entrada e oferecem estrutura semelhante à de um clube). Fechado por noventa dias na pandemia, o complexo demitiu 32 dos 48 funcionários. Reaberto em julho, está contratando 26.
6.000 pessoas por mês no verão no Recanto das Cachoeiras
O forte movimento retrata a transformação pela qual Brotas tem passado. Conhecida por atividades radicais, como o canionismo, a cidade se reinventou para atrair um perfil que os empresários locais chamam de “mais família” (e menos “jovem aventureiro”). “Criamos treze eventos voltados para o público de renda mais alta, como o triatlo e a gastronomia”, explica Fábio Ferreira, secretário de Turismo. Brotas agora tem sessenta restaurantes e 48 hotéis — era um de cada em 1993, quando famílias locais barraram a instalação de um curtume para apostar na vocação turística. O número de visitantes saltou de 250.000 para 350.000 nos últimos três anos. Entre eles, 60% têm ensino superior (além de 23% com pós-graduação) e o principal motivo das viagens passou a ser o “turismo contemplativo” — como o praticado no Recanto e no concorrente Ecoparque Cassorova, de apelo mais sofisticado.
Em número de visitantes, Brotas deixou para trás a vizinha Águas de São Pedro, que teve seu auge nos anos 70. “Eles não acharam outro ‘produto’ além da água medicinal”, diz Ferreira — que é ex-secretário da cidade. “O turista de São Paulo (o principal de Brotas, com 21% do total) se tornou mais exigente. Muitos destinos ficaram simplórios demais. Brotas soube elevar os padrões”, afirma Carlos Ferreirinha, especialista em luxo.
“Criamos treze eventos voltados para o público de alta renda, como o triatlo e a gastronomia”, diz o secretário de Turismo
Para não parar no tempo, Brotas precisa cuidar melhor de sua área central, onde ficam parte dos restaurantes e o acesso ao Parque dos Saltos (a opção de passeio gratuito). As ruas foram tomadas por letreiros publicitários, quase não há árvores (por incrível que pareça…) e falta sinalização para os casarões históricos. “O turista fica pouco no centro, não é aconchegante”, admite o secretário. Uma espécie de Lei Cidade Limpa está em discussão na Câmara.
*Colaborou Juliene Moretti
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 26 de agosto de 2020, edição nº 2701.