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Júlio Lancellotti vê a popularidade (e os problemas) crescerem na pandemia

Padre vence resistência de moradores e da Igreja com seu trabalho com moradores de rua, mas não dá trégua na batalha com a prefeitura

Por Pedro Carvalho
Atualizado em 27 Maio 2024, 17h37 - Publicado em 4 set 2020, 06h00
No escritório, com a “Santa Marina da identidade de gênero”: 165.000 seguidores no Instagram (Alexandre Battibugli/Veja SP)
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Às 6h40 da manhã, o canto dos bem-te-vis ainda é o único som da rua Taquari, uma movimentada paralela da Avenida Alcântara Machado, na Mooca. O padre paulistano Júlio Lancellotti, 71, já chegou ao escritório: uma salinha atrás do altar da Igreja de São Miguel Arcanjo, onde a única mesa vive apinhada de imagens de santos e suvenires pessoais — o “Jesus Cristo das ruas”, a “Santa Marina da identidade de gênero”, uma Nossa Senhora encontrada no lixo, um solidéu do papa Francisco que ele já levou para exibir na Cracolândia. O silêncio matinal é quebrado por Luiz Lancellotti, 28, um dos três sobrinhos que moram com o padre em um sobrado no Belém. “Trouxe seu chá”, ele diz. O padre termina rapidamente a xícara e caminha os cinco ou seis passos que levam à luz do púlpito. Dez fiéis aguardam a missa diária das 7 horas, sentados nos quinze bancos da pequena e modestíssima capela — o piso e o forro do teto lembram mais uma cozinha do subúrbio que uma suntuosa catedral católica. “Hoje vamos rezar para alguns irmãos que se foram”, começa o pároco. “Vejam, o Brasil já tem 118.000 mortos pelo coronavírus.”

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Medição de temperatura de um morador de rua, na Mooca (Alexandre Battibugli/Veja SP)

“O Haddad foi o prefeito com quem mais briguei. Ele disse que eu estragava a cidade. No poder, todo mundo fica igual”

Tão logo a pregação termina, a atmosfera de paz e serenidade ao redor de Lancellotti se desfaz completamente. Nas horas seguintes, a rotina do padre — que viu sua popularidade decolar nos últimos meses, graças à onda solidária da quarentena — é tomada por um vendaval de problemas a resolver. Não fossem as vestes brancas, poderia ser confundido com algum CEO atarefado. Em poucos minutos, estará ao telefone com Edson Aparecido, secretário de Saúde do município, denunciando a falta de enfermeiras para coletar testes de Covid-19 no centro de convivência São Martinho, ao lado da igreja. A conversa é interrompida pelo delegado Hamilton Benfica, titular da Polícia Civil na região, que investiga a agressão de dois policiais a moradores de rua. Em paralelo, precisa organizar a distribuição de doações a centenas de sem-teto que o procuram todas as manhãs. E, como se rodeado por um incessante enxame humano, ele é abordado por moradores de rua com as mais variadas súplicas. “Padre, o senhor se lembra que me ajudou no mês passado?”, pergunta a jovem com uma criança no colo. Assertivo, Lancellotti encurta a conversa: “De que você precisa?”. “Cinco passagens para Porto Alegre”. “Cinco não consigo, mas consigo três” — e indica a pessoa que a moça deve procurar.

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No centro de convivência São Martinho, ao lado da igreja que comanda: centenas de desabrigados todas as manhãs (Alexandre Battibugli/Veja SP)

A chegada do coronavírus transformou o dia a dia e a imagem do vigário que comanda a Pastoral do Povo da Rua, um braço da Arquidiocese de São Paulo. Há décadas, Lancellotti, filho do meio de um comerciante e uma dona de casa, presta assistência aos sem=teto das áreas centrais da cidade, uma população que visivelmente cresceu nos últimos meses — a prefeitura não sabe dizer qual foi o aumento. Na pandemia, a igreja que ele administra se tornou um ponto de referência para esses desabrigados. A cada manhã, centenas de pessoas passaram a formar uma fila na rua Taquari (o atendimento foi transferido para o centro São Martinho nas últimas semanas), uma cena que capturou a atenção dos paulistanos. As buscas pelo nome do pároco dispararam na internet. No Instagram, seu perfil saltou de 33.000 para 165.000 seguidores. “Olha aqui”, ele aponta a tela do celular, “a foto que postei minutos atrás tem 1.927 curtidas. E vai automaticamente para o Twitter e o Facebook”. A popularidade on-line se traduziu em doações. “É impressionante:quando peço algo, vem muita coisa”, ele diz.

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“ Uma das poucas amigas que tenho é a Erundina. Ela me ajudou muito na época em que eu mais era atacado”, diz, com lágrimas nos olhos

O clima de solidariedade ajuda a aplacar velhas resistências que Lancellotti sofre no bairro.“As pessoas diziam que eu deixei a Mooca feia. Já sofri até tentativa de assassinato, jogaram um carro em mim na calçada. Vira e mexe, alguém passava na igreja e gritava ‘comunista’” — o padre é próximo a personalidades da esquerda e se diz um socialista. “Na pandemia, tudo isso parou. Viram que, nos momentos mais difíceis, nós estávamos na rua ajudando.” O Conselho de Segurança (Conseg) e a delegacia da região evitam fazer críticas ao padre. “Aumentou o número de moradores de rua, mas isso não resultou em mais violência”, diz Wanda Herrera, presidente do Conseg —tem a mesma opinião o delegado Benfica.

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“Bia Doria me ligou para pedir ajuda, após a polêmica sobre a distribuição de alimentos. Dei apoio. Agora, ela me atende no primeiro toque”

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Uma guerra, pelo menos, não dá sinais de trégua: a permanente batalha que o padre trava com a prefeitura de São Paulo. Lancellotti é crítico do modelo de abrigos municipais à população de rua. A cidade tem 24.267 vagas nesses locais, ao custo de 16,5 milhões de reais por mês — e, apesar do visível aumento de pessoas nas calçadas, toda noite existem mais de 1.000 leitos disponíveis. “A vacância prova que o modelo está ultrapassado”, ele diz. Para o padre, as rígidas regras de convivência, além do grande volume de pessoas que dividem o mesmo espaço, afastam possíveis usuários do serviço. Como solução, ele propõe a locação social (na qual a prefeitura paga um aluguel ou diárias de hotel para os desabrigados) e as repúblicas autogeridas. “O padre não entende as limitações do poder público”, diz Berenice Giannella, secretária de Assistência Social — que foi chefe de Lancellotti no início da década passada, enquanto presidia a antiga Febem, onde ele trabalhou como orientador social. “Ele me liga toda semana às 8 da manhã para reclamar de alguma coisa. Desde os tempos em que trabalhávamos juntos, sempre teve esse perfil: ele metia a boca na Febem. Ele tem essa chatice, mas cumpre um papel importante. Muitas vezes, tem razão naquilo que cobra”, ela reconhece.

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Profissionais de saúde com o padre: testes de Covid-19 (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Engana-se quem pensa que a relação era melhor nos tempos da gestão Fernando Haddad, do PT. Os dois passaram a ter sérias rusgas após Lancellotti impedir a desocupação de uma favela no entorno do viaduto Bresser, na Zona Leste. “Ele me chamou ao gabinete e disse que eu estragava a cidade, que ele é quem sabia o que era melhor para aquelas pessoas”, conta. “O Haddad foi o prefeito com quem mais briguei. No poder, todo mundo fica igual”, diz o padre. O ex-prefeito não quis falar à reportagem. No início de 2017, finda a administração petista, eles se reencontraram. Na ocasião, Lancellotti tinha ido dar a extrema-unção à ex-primeira-dama Marisa Letícia.“ Haddad me chamou em um canto e disse que eu estava sendo muito ‘condescendente’ com o Doria (então prefeito do PSDB), enquanto era sempre ‘cáustico’ com ele. Respondi: ‘Já pedi alguma coisa para você? Não tenho rabo preso nem com você nem com o Doria’”, ele conta. Após a recente polêmica sobre doações a moradores de rua, a própria Bia Doria, primeira-dama e presidente do Fundo Social do estado, também ligou para pedir a Lancellotti que a defendesse. “Disse que aguentasse firme, pois sei como é ser massacrado nas redes sociais. Depois, dei uma declaração de que aquele não era o pensamento dela, mas de uma classe”, diz. “Agora, ela atende minhas ligações no primeiro toque.”

“O padre tem essa chatice, mas cumpre um papel importante. Muitas vezes, tem razão”, diz a secretária de Assistência Social

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Sempre entre a cruz e a espada da política, Lancellotti considera ter feito apenas uma amiga de verdade no meio: Luiza Erundina — segundo ele, a melhor prefeita que a cidade já teve. “Na época em que eu era mais atacado pela mídia, ela juntou o secretariado e veio à Mooca me dar um abraço, para mostrar apoio”, ele relembra com lágrimas nos olhos. Os ataques mais duros da opinião pública aconteceriam no início dos anos 2000, quando o padre foi chantageado por um casal que o ameaçou com denúncias de pedofilia. Em 2011, Conceição Eletério e Anderson Batista, um ex-interno da antiga Febem, foram condenados a sete anos e três meses de prisão, após investigações mostrarem que o caso, na verdade, era uma tentativa de extorsão. Na versão deles, Lancellotti havia oferecido 200.000 reais para que Batista negasse um romance entre os dois.

São Paulo 27 agosto 2020Padre Julio LancelottiFoto Alexandre Battibugli
Ajuda aos sem-teto, após a missa matinal: profusão de súplicas diárias (Alexandre Battibugli/Veja SP)

A urgência da pandemia aproximou Lancellotti de lideranças da Igreja com quem tinha certas diferenças. Um exemplo é o padre Simone Bernardi, 44. Nascido na Itália, ele é um dos coordenadores do Arsenal da Esperança, o maior centro de acolhimento de moradores de rua de São Paulo, onde dormem até 1.150 pessoas por noite. O abrigo funciona na antiga Casa do Imigrante, um edifício tombado de 1886, ao lado do Museu da Imigração, na Mooca. As regras locais são rígidas — quase todos os usuários têm de deixar as instalações após as 8 da manhã. Mas o espaço tem jardins bem cuidados e oferece cursos profissionalizantes para os vulneráveis. “Temos estilos diferentes”, diz Simone. “Você pode tentar resolver o problema gritando em um telhado, ou pode lutar todos os dias para oferecer aos moradores de rua uma estrutura com colchões limpos e boa comida. Isso, para mim, é uma escolha radical”, diz. Nos últimos meses, Lancellotti fez visitas ao Arsenal e os dois religiosos chegaram a gravar vídeo juntos, para pedir doação de alimentos.

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O padre Simone, um dos gestores do maior centro de acolhida de São Paulo: divergências (Alexandre Battibugli/Veja SP)
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Se a postura contestadora o distancia de alguns pares, o padre consegue evitar maiores embates com a cúpula da Arquidiocese.“Não causo problemas de hierarquia. O Dom Odilo (Scherer, bispo de São Paulo) me mantém como vigário do Povo da Rua. Quando acha que passei do ponto, me corrige”, diz. Para não quebrar as regras da instituição, Lancellotti não irá declarar apoio a candidatos à prefeitura. Qualquer que seja a gestão, ele promete buscar soluções conjuntas para os sem-teto. Além, claro, de seguir em guerra com quem ocupar a cadeira.

Camping: a nova briga

A nova batalha entre Lancellotti e a prefeitura é sobre um camping que a atual gestão quer criar para moradores de rua. Barracas para atender 100 pessoas seriam montadas em um galpão alugado, ainda sem local definido— o projeto está sob análise do Conselho Gestor de Assistência Social. “As barracas são mais seguras para os usuários guardarem seus pertences”, diz Berenice Giannella, secretária de Assistência Social. Soninha Francine,que ocupou o mesmo cargo, propôs algo similar em 2016. Para o padre, a opção é indigna. “A biografia da secretária não merece isso”, diz Lancellotti (que foi funcionário de Berenice na então Febem).

Publicado em VEJA SÃO PAULO de 9 de setembro de 2020, edição nº 2703.

 

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