Quem está no volante da mudança da mobilidade em São Paulo
Do carregador de patinetes que fatura 200 reais por dia ao estacionamento que abriga feiras, passando pelas motos elétricas, paulistanos criam negócios
Foi-se o tempo em que um dos principais objetivos de jovens e adultos era a conquista do automóvel próprio. Nos últimos quatro anos, o número de primeira habilitação em todas as faixas etárias diminuiu 16% na cidade, segundo dados do Departamento Estadual de Trânsito (Detran). Em 2014, foram emitidas 13 800 novas CNHs por mês; em 2018, as emissões mensais do documento caíram para 11 500. As datas coincidem com dois fatores: a persistente crise econômica (uma carteira de motorista nova não sai por menos de 2 000 reais) e a chegada de aplicativos de transporte individual, como Uber, 99 e Cabify. Por aqui, diariamente, são feitas mais de 362 000 viagens por meio desse modal.
A mudança no comportamento do paulistano impacta diretamente alguns segmentos. Os shoppings, que sempre obtiveram boas receitas com o sobe e desce das cancelas, por exemplo, viram o número de veículos cair, junto com o faturamento. Já o Uber, entre 2017 e 2018, registrou um aumento de 29% nas chamadas para corridas com destino a quatro centros de compras (JK Iguatemi, Vila Olímpia, Market Place e Iguatemi). Nesse último, com o espaço externo cada vez menos concorrido, a saída foi utilizar a área das vagas para a realização de eventos. Nas próximas páginas, veja como as novidades impactam ou poderão impactar a vida dos paulistanos, que precisarão se adaptar rapidamente às mudanças.
FUTURO MOVIDO A BATERIA
Depois de iniciar, em dezembro, o serviço de compartilhamento de scooters elétricas de 50 cilindradas (há 100 unidades à disposição na capital), a startup Riba volta suas rodas para o ramo de entrega de alimentos. A partir de outubro, um projeto piloto em parceria com o iFood vai disponibilizar seis motos elétricas maiores, com o dobro da potência das scooters. Os veículos são fabricados na China e montados em Varginha (MG). O teste vai durar três meses e será realizado em regiões concorridas, como Itaim e Pinheiros. Caso a empreitada vá adiante, a escala aumentará e novas unidades a bateria poderão ser usadas. A operação terá dois diferenciais, muitas vezes despercebidos pelos clientes que esperam pela encomenda quentinha. Além da emissão zero de ruídos e poluentes, os veículos são rastreáveis, ou seja, o gestor sabe exatamente se o motociclista correu demais, fez uma conversão proibida ou trafegou em cima da calçada para ganhar tempo. O limite de velocidade também pode ser estabelecido previamente pela empresa. “A gente se preocupa com a segurança de nossos parceiros, e contar com um modal que controla a velocidade é sensacional”, afirma Fernando Martins, gerente de inovação do iFood. Em abril deste ano, a empresa implementou na capital o iFood Box, um armário com isolamento térmico instalado em edifícios de grande circulação. Sem precisar falar com o solicitante, o entregador coloca a encomenda no compartimento e pode ir embora. A medida será estendida, até o fim do ano, a locais como parques e hospitais. “Já recebemos relatos de entregador que esperou quarenta minutos até o cliente descer”, conta Martins. O próximo passo do iFood, também para este ano, é implantar um sistema de entrega via drone.
O CAÇADOR DE PATINETES
Morador de Pirituba, na Zona Norte, Daniel Pereira, 18, sonha tornar-se profissional de educação física. Atualmente, passa de oito a dez horas por dia atrás de patinetes da Yellow, uma das operadoras do modal na cidade. Diferentemente do que ocorre com os clientes, que usam o aplicativo para localizar o aparelho mais próximo e seguir viagem, a tarefa de Pereira é recolher os equipamentos sem bateria. Uma vez acomodadas em um carrinho puxado por uma bicicleta (ele gastou 1 300 reais na engenhoca), as patinetes são transportadas para uma central da companhia, localizada na Rua Cardeal Arcoverde. Para isso, ele ganha 4 reais por unidade. Não vai embora enquanto não atinge a meta de cinquenta veículos, o que lhe rende 200 reais por dia. Quem possui carro pode levar as amarelinhas para casa e recarregá-las na tomada. No dia seguinte, o aplicativo avisa o lugar em que cada uma precisa ser colocada. Nesse caso, o pagamento é maior (7 reais por unidade). “Dou uma parte ao meu pai, pago 300 reais por mês para estacionar a bicicleta e o restante eu gasto”, afirma o rapaz, que roda 20 quilômetros por dia atrás dos veículos de duas rodas.
ESTACIONAMENTO CONVERSÍVEL
Ao passarem por um estacionamento da Rua Augusta, próximo à Avenida Paulista, em fevereiro do ano passado, as empresárias Edmara Bittencourt e Flávia Del Grecco viram uma oportunidade. Nos domingos, quando a Paulista fica fechada para carros, o espaço permanecia às moscas. Por que, então, não transformá-lo em uma feirinha descolada? Elas fizeram uma proposta ao dono, que topou ceder o local uma vez por semana. Com dezoito expositores fixos e dez rotativos, o negócio chega a atrair 5 000 pessoas em dias mais movimentados. Cada expositor paga a partir de 100 reais à dupla e comercializa vestuários, artesanatos, alimentos e objetos para decoração. “A gente fazia as feirinhas em universidades, mas sempre achou que precisava de um lugar com mais diversidade de público”, afirma Edmara.
Nos shoppings, com a receita dos estacionamentos cada vez mais em baixa, empreendimentos procuram alternativas para seu uso. No Iguatemi, o bulevar foi ocupado quatro vezes neste ano para eventos como festa junina. No Continental (Jaguaré), o Cine Autorama promove apresentação de filmes para rememorar o estilo de cinema drive-in, em que o público fica dentro do carro.
GANHANDO AUTONOMIA AOS POUCOS
Numa escala de zero a 5, o mercado de veículos autônomos no mundo acabou de cruzar a metade do caminho. A sequência foi criada pela entidade internacional Sociedade dos Engenheiros Automotivos (SAE), e os testes mais avançados estão no nível 3. Isso significa que há carros que possuem sistema de controle assistido, o que possibilita ao motorista tirar a mão do volante por alguns segundos. “Pode parecer pouco, mas é suficiente para que a pessoa se alongue ou pegue algo que tenha caído”, afirma Camilo Adas, conselheiro de tecnologia da SAE Brasil.
A Volvo já disponibiliza aqui no país uma tecnologia nível 2, que permite aceleração e frenagem automática, mas as mãos precisam estar no volante. Recentemente, a empresa Questtonó realizou um estudo de impacto dos carros autônomos na Avenida Paulista. Resultado: quando eles chegarem, a via poderá ter apenas uma faixa de cada lado. “Os autônomos vão devolver à cidade muitas áreas que hoje são mal aproveitadas para a vazão de carros”, afirma Barão di Sarno, sócio da Questtonó.
TRABALHO EM CASA
Quatro anos atrás, quando viu a empresa crescer e colocou na ponta do lápis seus custos, Paulo Marchetti, CEO da ComparaOnline, resolveu pôr em prática uma ideia que estava maturando havia tempos. Ele fez parte de seus funcionários trabalhar em casa. Hoje, a companhia, que oferece comparativo de custos de seguros e serviços de crédito, obtém uma economia significativa com aluguel, luz, servidores, internet, limpeza, cafezinho e até copos plásticos. Marchetti calcula que deixou de gastar 1 175 reais com cada um dos sessenta empregados (a maioria da área de atendimento) que não precisam mais se locomover para a Vila Olímpia, onde Marchetti toca as operações em um coworking com apenas 32 lugares. “Imagine a melhora na qualidade de vida do funcionário que deixa de sair diariamente da Zona Leste rumo à Zona Sul de transporte público ou próprio”, afirma. Nem tudo são flores no universo remoto. Há quem não se ajuste à necessidade de organização e existem os que ficam com a sensação de não estar fazendo nada. Para evitar a “deprê”, a empresa chama a pessoa e tenta encontrar a solução quando detecta queda de produtividade. “Se ela não está se adaptando em casa, pode vir dois dias por semana. Muitas vezes o clima do lar não ajuda.”
CARRO POR 10 REAIS A HORA
Desde que vendeu seu Hyundai Creta ano 2018, em janeiro passado, o publicitário Julio Bastos, 31, mudou de bairro e de vida. Após trocar os Jardins de altos e baixos pelo plano Itaim, tirou do orçamento gastos excessivos como seguro (5 500 reais por ano) e estacionamento (300 reais por mês). Sem falar no IPVA e no combustível. “Passei a andar de bicicleta, patinete, a pé, de Uber e de Turbi”, comemora. Esse último é um carro compartilhado que fica estacionado na porta de seu prédio, construído pela incorporadora Vitacon. A startup de transporte, criada há dois anos, possui 410 veículos espalhados pelas zonas Sul e Oeste, de modelos como HB20 (Hyundai), Lancer (Mitsubishi), Kicks (Nissan) e Mini Cooper, todos automáticos. Os carros mais simples custam 10 reais por hora mais 50 centavos por quilômetro rodado. A meta é aumentar a frota para 2 000 automóveis até o fim do ano que vem. O faturamento previsto para 2019 também é ambicioso: pular de 1,7 milhão de reais, em 2018, para 10 milhões de reais. “Vamos crescer em ondas, por isso ampliaremos o raio de operação aos poucos”, afirma Diego Lira, CEO da locadora de veículos digital. Os próximos bairros a receber os Turbi serão Mooca e Tatuapé, na Zona Leste.
BIKE INSPIRADORA
Ao largar a carreira de gerente no Itaú, em 2014, o administrador Daniel Moral logo foi seguido pela então colega de trabalho e esposa, a matemática Fanny Moral. Cansado de pegar trânsito e com o filho recém-nascido, o casal queria ficar mais perto do bebê. Para isso, ambos decidiram transformar a casa deles de 300 metros quadrados, na Chácara Klabin, Zona Sul, em um coworking, a Eureka. A empresa, que começou na garagem e teve um custo de 100 000 reais, deu certo e atraiu a vizinhança. Após serem “expulsos” da casa pelo negócio (alugaram um apartamento na região), eles iniciaram, há nove meses, um plano mais ambicioso: reformar escritórios antigos bem localizados e levar empresas para esses lugares. Escolheram a Avenida Paulista, onde encontraram quatro andares e uma cobertura em mau estado. Hoje, o local possui 3 000 metros quadrados, abriga 700 pessoas e é sede de empresas como a Tembici, que aluga bicicletas compartilhadas patrocinadas pelo Itaú.
A ligação de Daniel com as bikes não é de hoje. Ele é um dos criadores do Bike Tour SP, que realiza passeios sobre duas rodas pelo centro e pela Vila Madalena. Para participar, o ciclista não paga nada nem precisa levar bicicleta própria. “Mas a saída de um patrocinador importante pode dar uma freada no negócio”, queixa-se Daniel, que instalou na cobertura do prédio uma miniciclovia e empresta veículos de duas rodas aos frequentadores do espaço durante o expediente. Enquanto preparam a expansão da Eureka para Belo Horizonte e Portugal, Daniel e Fanny buscam novos prédios na região da Paulista e do centro velho, área com grande quantidade de imóveis comerciais vazios e vastas opções de locomoção como, claro, as ciclovias.
ELÉTRICOS SEM TRANSTORNO
Quem utiliza os tradicionais ônibus elétricos na cidade conhece bem aquela cena de freada abrupta toda vez que a haste que liga o veículo à rede aérea de energia se solta. Sem falar nas filas de carros parados quando ocorre um apagão. Com os modelos movidos a bateria, esses incômodos estão com os dias contados. Até o fim do mês está previsto o início da operação de sete ônibus da empresa Transwolff que farão a linha 6030-10, entre Interlagos e o Terminal Santo Amaro, na Zona Sul. Há ainda mais sete em fase final de fabricação. Construídos pela chinesa BYD em Campinas, esses veículos demandam menor manutenção, em comparação com os atuais elétricos e principalmente com os movidos a diesel. “Enquanto os convencionais possuem 15 000 peças, os nossos ônibus dispõem de apenas quinze”, afirma Adalberto Maluf, diretor de sustentabilidade da BYD no Brasil. A má notícia é que a expansão dos carros movidos a bateria para o restante da frota paulistana (com cerca de 14 000 veículos) vai depender da interminável licitação que a prefeitura tenta promover desde a gestão de Fernando Haddad (PT), mas não consegue.
“UBER” PARA PASSAGEIROS VARIADOS
Apaixonada por animais e voluntária em um projeto social voltado para gatos, a consultora Andréia Marino, de 50 anos, colocava seu Toyota Corolla 2014 à disposição sempre que um bichano precisava se locomover, seja de um abrigo para outro, seja para um hospital. Nunca cobrou pela ajuda, mas pensou que uma tarefa dessas poderia ajudá-la a complementar a renda. Dito e feito. Achou a PetDriver e passou a atuar como chofer de bichos de estimação. O trabalho ganhou destaque e hoje ela virou também uma espécie de treinadora para novos candidatos. Criada no Rio de Janeiro, a startup chegou a São Paulo em outubro de 2018 e conta com 100 motoristas, que fazem no total cerca de 1 500 viagens por mês. A meta da empresa é multiplicar esse número por dez. Para isso, faz parcerias com pet shops e hoteizinhos, além de operar no mercado particular (o cão da foto, Pluto, é cliente assíduo do serviço). Para conseguir o quepe da PetDrive, o candidato passa por um questionário e uma entrevista. A primeira pergunta a que precisa responder é se gosta de animais, claro. Mas e a sujeira, que tanto incomoda alguns motoristas? “Disponibilizamos capa de couro, um aspirador de pó portátil e um produto de higiene supercheiroso para cada um deles”, afirma Léo Yalom, 34 anos, um dos sócios. Por enquanto, a empresa, que retém 30% da corrida, atua em uma área de aproximadamente 12 quilômetros ao redor do Parque Ibirapuera, mas pretende expandir-se para as regiões Norte e Leste até o fim do ano. Outra companhia que trabalha em segmentos específicos é a Eu Vô, que começou a operar em agosto. Criada em São Carlos pelos irmãos Victória e Gabriel Abdelnur, em 2016, a startup é focada em idosos e pessoas com mobilidade reduzida, com atendimento de porta a porta. “Todos os motoristas são treinados para levar o cliente e, se necessário, acompanhá-lo até uma consulta ou um supermercado”, afirma Victória. Um serviço de três horas custa cerca de 230 reais.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 11 de setembro de 2019, edição nº 2651.