Museu do Ipiranga passa por obra milionária e dobra a capacidade do espaço
Após quase uma década de portas fechadas, tem reabertura prevista para 2022, com jardim integrado, mirante e restaurante
Construído no fim do século XIX pelo engenheiro e arquiteto Tommaso Gaudenzio Bezzi, o Museu Paulista, mais conhecido como Museu do Ipiranga, está fechado para o público desde 2013 devido a péssimas condições físicas e estruturais. Além de rachaduras e infiltrações do teto ao chão, o espaço, de 6 600 metros quadrados e tombado pelos órgãos de patrimônio federal, estadual e municipal, apresentava fiação exposta e não possuía sistema eficaz de combate a incêndios.
Agora, com 70% das obras de restauro concluídas, a previsão de reinauguração do espaço, cuja gestão pertence à Universidade de São Paulo, será 7 de setembro de 2022, data da comemoração do bicentenário da Independência do Brasil e três anos depois do início dos trabalhos. A principal novidade da empreitada, orçada até agora em 178 milhões de reais e bancada majoritariamente por empresas por meio de incentivos fiscais, será a construção de mais 6 845 metros quadrados de áreas destinadas à visitação, o que dobrará a capacidade do espaço.
Edificada no subsolo, ao lado dos blocos de fundações originais e com acesso pelo nível da Praça do Monumento, a área vai abrigar uma sala de exposições temporárias, cafés, auditório, bilheterias e lojas. Dali, os visitantes subirão de elevador ou escada rolante até o edifício histórico. Um mirante no topo do prédio, a restauração de um jardim francês e a construção de um restaurante completam as novidades do local. Com isso, a expectativa de público será de 1 milhão de pessoas por ano, o dobro do que era verificado até seu fechamento.
peças possui o acervo do espaço
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Além de criar novos ambientes, a reforma do velho museu vai abrir espaços de exposições em salas que antes eram ocupadas pelo acervo de cerca de 450 000 peças. “Nosso acervo estava todo lá, juntamente com todo o pessoal administrativo. Agora, não haverá mais áreas privativas e os visitantes poderão circular por todos os locais”, afirma Rosaria Ono, diretora do Museu do Ipiranga.
“Guardaremos no máximo 4 000 peças, o restante continuará acondicionado em cinco locais alugados para receber os materiais e objetos.” Depois da reforma do museu, está prevista a construção de um bloco técnico para juntar o acervo em um lugar só. Como todo o terreno atual é tombado, a obra será nas imediações da Avenida Nazaré. Ainda não há prazos estabelecidos. Enquanto isso, a USP vai desembolsando 173 900 reais mensais com as locações.
Outra promessa de Ono, que prevê ingressos entre 15 e 20 reais (e gratuidade para excursões de escolas públicas), é a instalação de sistemas contra incêndio e monitoramento predial, inexistentes no passado. “Queremos mudar a ideia de que as pessoas só visitam o museu uma vez na vida. Renovaremos as exposições e elas virão duas, três vezes por ano”, acredita.
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Não é simples transformar um prédio com mais de 120 anos em um local moderno. Mais do que quebrar e reconstruir, o ato de restaurar um edifício tombado exige cuidados minuciosos e muito desvelo. Durante a obra, qualquer porta, janela ou pedra removida do local original precisa receber uma identificação para ser recolocada após as intervenções.
“Na fachada sul, a pintura final já foi realizada e também exigiu um trabalho quase cirúrgico para aplicar uma demão no mesmo tom amarelo da pintura original”, afirma o engenheiro civil Frederico Martinelli, responsável pela obra. Um dos desafios das escavações para a ampliação, segundo ele, é trabalhar sem abalar suas estruturas. “Não sei se nossas casas aguentariam todos esses anos, mas o museu é um teste de tempo. Duas vezes por dia, de manhã e à tarde, todas as colunas precisam ser sempre monitoradas para conferir se não sofreram qualquer deformação no processo.”
Principal estrela do pedaço, o quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo, que possui 5 metros de altura e 7 metros de comprimento, também não pode sofrer nenhum movimento e precisou ser restaurado ali mesmo, na parede.
Do lado de fora e bem menos trabalhosa que as incursões milimétricas da pintura mais famosa do local, a reforma do jardim francês custará 19 milhões de reais (valor bancado pelo Tesouro) e abrirá mais espaço para a convivência dos frequentadores da praça, do museu e do parque. Além da substituição de parte das árvores e mudas, a área terá espaço para food bikes, restaurante com cerca de vinte mesas, sanitários e um grande chafariz, formado por bacias que seguem o desnível do terreno.
“Será o maior eixo visual, onde as pessoas vão querer tirar suas fotos”, afirma Paulo Garcez Marins, um dos curadores do museu. Ao todo, essa área externa terá 12 000 metros quadrados de espaços construídos e mais 10 000 metros quadrados de paisagens verdes. “Jardins históricos têm tratamento específico, o restauro precisa ser feito sempre com as mesmas espécies de planta para não perder as características da paisagem original, pensada no início”, afirma Marins, se referindo à necessidade de manter a plantação de espécies como o cipreste-italiano e a tamareira-das-canárias.
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Enquanto algumas áreas ganharão a repaginação total, outras não possuem a mesma expectativa. Em frente ao museu, ao cruzar a Rua dos Patriotas, a Praça do Monumento contrasta com toda a movimentação do vizinho. Adorado pelos skatistas e frequentado por moradores da região, o espaço, sob os cuidados do município, também pede por renovações.
“A remoção das grades é uma mudança que eu gostaria de ver um dia”, sonha Pablo Hereñú, do escritório H+F Arquitetos, responsável pelo projeto da reforma principal. Em nota, a prefeitura diz que prevê uma ampliação do Parque da Independência, com a construção de um edifício administrativo, pista de skate, parquinho e área de caminhada. A obra, sem prazo para começar, está orçada em 8 milhões de reais. O córrego do local, apesar da aparência e do odor desagradáveis, recebe limpeza de seu entorno pela prefeitura a cada dois meses. Além disso, a Sabesp promete sua despoluição total até a reinauguração do museu.
Por muito pouco o Museu do Ipiranga não sofreu as mesmas tragédias de outros locais culturais históricos. Em fevereiro de 2018, o Ministério Público moveu uma ação civil contra a USP e o governo estadual cobrando celeridade nos trabalhos de remediação da edificação. Na ocasião, um laudo mostrou diversas inconsistências na estrutura e apontou que 40% do acervo continuava guardado no museu, fechado havia cinco anos.
Com o início das obras, em 2019, o processo foi extinto. Sorte dos mais de 500 000 visitantes do Ipiranga, que não teve o mesmo fim de espaços importantes, como Museu da Língua Portuguesa (2015), Teatro Cultura Artística (2008), Auditório Simon Bolívar do Memorial da América Latina (2013), laboratório de répteis do Instituto Butantan (2010) e parte do prédio da Cinemateca Brasileira (2016). Sem falar no Museu Nacional do Rio de Janeiro, que pegou fogo em 2018 e até hoje não foi recuperado.
Questionado sobre como as gestões passadas deixaram o Ipiranga chegar ao ponto que chegou, o secretário de Estado da Cultura, Sérgio Sá Leitão, disse que não poderia falar pelo passado. “O importante é que teremos o museu plenamente recuperado”, disse, mesmo que quase uma década depois de ser fechado.
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AS PRIMEIRAS EXPOSIÇÕES
Veja o que será exposto no Museu do Ipiranga a partir de setembro de 2022
Uma História do Brasil: a exposição compreende o hall, a escadaria principal e o salão nobre e tem como acervo principal as obras de arte que estão integradas à arquitetura
Passados Imaginados: exibe as telas de grandes dimensões, como a famosa Independência ou Morte, além da maquete de gesso representando a cidade de são paulo em 1841
Territórios em Disputa: aqui serão expostos os objetos mais antigos do museu, que remontam aos séculos XVI e XVII
Mundos do Trabalho: a exposição trata do universo do trabalho num amplo espectro de atividades desde o período colonial até os dias atuais
Casas e Coisas: expõe o processo de transformação dos espaços da casa que levou ao esvaziamento de suas funções produtivas
Para Entender o Museu: conta a história do edifício e da instituição
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A QUE PONTO CHEGOU
Relatório do Ministério Público apontou diversas irregularidades
ACHADOS E PERDIDOS
Toda obra que necessita movimentar grandes quantidades de terra precisa contratar um serviço de arqueologia. Assim que foi contatado para atuar para a empresa Concrejato, o arqueólogo Renato Kipnis, diretor da Scientia Consultoria Científica, sabia que encontraria coisas sob a terra do entorno do Museu do Ipiranga.
“Não esperávamos encontrar tantas peças”, afirma o profissional, que tirou mais de 400 objetos do chão, entre garrafas, louças, cachimbos, ossos de animais e até uma dentadura. Essa última chamou atenção por dois motivos: pela parte de trás, que era afixada no céu da boca, e dois restauros de ouro.
“Quem via de longe imaginava que os dentes eram originais, não uma dentadura”, diverte-se Kipnis, que ainda vai estudar a origem da prótese. Outro objeto misterioso foi uma garrafa verde quebrada que continha sete papéis em que estava escrito Claudete Jahaqui. “Imaginamos que pode se tratar de alguma atividade religiosa, como oferendas e simpatias”.
“Eu trabalhei com mais cinco restauradores. Como o quadro é muito grande (mede 7 metros de comprimento por 5 metros de altura) e não passava pela porta, precisamos trabalhar ali mesmo. Trabalhamos em um andaime, com cinto de segurança e capacete. Havia momentos em que podíamos sentar num banquinho, mas em outros era em pé mesmo. O esforço dos restauradores é muito maior do que se pudéssemos enrolar o quadro e levá-lo para o ateliê. Tudo levou seis meses para ficar quase pronto, e ainda falta passar um verniz por cima. A gente não pinta por cima, retoca, com pincel fininho, tudo muito delicado. Essa tela estava opaca, com muita sujidade acumulada. Passou por intervenções anos atrás, no começo do século XX. Foi um trabalho na época feito por pintores. Tinha muitas repinturas que agora foram retiradas. Na profissão, aprendi que o restaurador não pinta. Isso é um pecado mortal. Temos um respeito total, absoluto, pela intenção do pintor. Temos de entender qual foi a intenção do pintor. Não podemos alterar. Não somos um coautor. A obra tinha um céu alterado, com uma grande mancha. O verniz ficou amarelo. Retiramos o verniz e encontramos o céu azul. É azul, lilás, cor-de-rosa. A tela ficou muito bonita. Chegamos na cor do pintor.”
Yara Petrella, restauradora do Museu do Ipiranga
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Publicado em VEJA São Paulo de 09 de junho de 2021, edição nº 2741