Telas gigantescas em laterais de prédios custam até 200 000 reais
Paredões vazios viram negócio, empresas encomendam obras e movimentam mercado para artistas, produtores e até síndicos
O horizonte de São Paulo tem se transformado com o aumento da produção de murais gigantescos nas laterais de prédios. E não é somente um meio de expressão artística para tornar mais agradável a circulação pelas ruas da cidade cinza. Essas imensas telas viraram negócio, chegam a custar 200 000 reais e atraem artistas, produtores, empresas e responsáveis por edifícios interessados em faturar. Os pontos que mais despertam a atenção são as bordas do Minhocão, a Rua da Consolação e o bairro de Pinheiros.
Com quatro murais no currículo, a produtora Dionisio Arte é uma novata de peso no mercado. Seus dois trabalhos mais recentes, de 2019, foram patrocinados pela Veloe, unidade da Alelo para pagamento de pedágios e estacionamentos. As obras, assinadas pelos pintores paulistanos Pomb e Pardal, estão instaladas na Consolação e na Avenida Rio Branco, respectivamente. “A companhia nos pediu que os painéis estivessem em vias com grande fluxo de carros. A ideia era tornar o percurso mais leve”, conta Victor Nomura, um dos sócios da Dionisio. “Mesmo sem ter o nosso logotipo, esse tipo de iniciativa agrega valor, já que reforça nosso posicionamento de transformar a vida das pessoas”, afirma André Turquetto, diretor de marketing e produtos da marca. Os envolvidos nas negociações preferem não divulgar os valores das transações, mas a Vejinha descobriu que encomendar uma composição em uma empena cega (nome técnico para as laterais de prédios que não têm nenhuma abertura) pode custar de 50 000 a 200 000 reais, e os produtores são contratados por empresas que desejam associar sua imagem à questão da ocupação criativa do espaço urbano. São articuladores entre as companhias, os artistas e os prédios, onde os condôminos precisam autorizar a intervenção artística. “Se o cliente é muito palpiteiro, buscamos um artista que é mais flexível na concepção do painel. Se sentimos que temos um ambiente mais livre, procuramos profissionais que muitas vezes não fazem concessões em seu processo criativo”, explica Nomura.
Desde 1º de janeiro de 2007, depois que o então prefeito, Gilberto Kassab, sancionou a Lei Cidade Limpa, é proibida a colocação de anúncios publicitários em imóveis, o que fez com que São Paulo ganhasse milhares de telas em branco. Gustavo e Otávio Pandolfo, OSGEMEOS, fizeram uma das primeiras intervenções paulistanas do gênero, em 2009, no então Edifício dos Comerciários, no Vale do Anhangabaú. Três anos depois, a criatura amarelada chamada O Estrangeiro virou uma mancha cinza que prenunciava a demolição da construção.
Esses espaços sem vida na lateral dos prédios levaram à criação do O.bra, em 2015, inspirado em eventos que já aconteciam em Miami, nos Estados Unidos, e Copenhague, na Dinamarca, em que as grandes estrelas eram grafiteiros e seus murais. O festival deixou como legado para a cidade dez intervenções de grande porte nos arredores do Largo do Arouche, na República, e também nomes que hoje movimentam o mercado das empenas cegas. Marina Bortoluzzi e Marcelo Pimentel, idealizadores do evento ao lado do empresário Luan Cardoso e da produtora cultural Vera Santana, fundaram a Instagrafite, que começou como uma página na rede social para divulgar o trabalho desses profissionais. Hoje, como produtora, já contabiliza 22 murais em prédios da cidade. Desses, com valores entre 100 000 e 200 000 reais, segundo a dupla, sete foram contratados pela fintech Nubank. O mais recente, de outubro de 2019, para a mesma quadra da sede, na Rua Capote Valente, em Pinheiros. A composição com uma narrativa fantástica foi criada por um designer do banco, em uma ação de reconhecimento ao trabalho criativo do funcionário e como sintoma desse novo momento dos paredões, com pluralidade de linguagens, o que inclui iniciativas feitas com lambe-lambe e estêncil. Também participantes do O.bra, Luan Cardoso, da produtora NALATA, construiu sua história pós-evento em parceria com o grafiteiro Speto, de quem se tornou agente. Somente neste ano, eles produziram três murais juntos, um independente, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, e outro, que ocupa duas empenas no Minhocão, foi financiado pelo capital privado. O próximo passo é o Festival NALATA, que acontecerá na cidade em abril de 2020, com quinze intervenções de grande porte bancadas por empresas. “Haverá patrocínio de marca sem relação direta com a cultura do grafite, mas ainda não posso divulgar os nomes”, disse Cardoso. Vera também programa outro mural patrocinado, em Pinheiros, com a artista Prila Maria.
Além desse modelo mais corporativo, em que uma empresa paga a uma produtora para fazer a intermediação entre o artista e o prédio e contratar os equipamentos de segurança para a execução da obra, há uma forma híbrida, com trabalhos bancados apenas em parte pela iniciativa privada, em um modelo de parceria. É o caso do Aquário Urbano, conjunto de quinze pinturas com tema de fundo do mar, em 10 000 metros quadrados de intervenções em quadras ao longo da Rua Bento Freitas, na República. Com estimados 4 milhões de reais de investimento, a cifra de 1 milhão, destinada à aquisição de tintas, foi doada pela Sherwin-Williams. A rubrica de aluguel de equipamentos, cerca de 400 000 reais, nasceu de outro “aperto de mão”, agora com as empresas Mills e JLG. Outros 50 000 reais vieram da construtora Think, que vai lançar um empreendimento que cobrirá parte da obra. Já o produtor que assina a empreitada, Kleber Pagú, e sua sócia e esposa, Fernanda Bueno, investiram 80 000 reais. “Penso sempre em Inhotim (Instituto de Arte Contemporânea em Brumadinho, Minas Gerais). Minha questão com os murais não é a pintura em si, mas como podem ficar a cidade e a nossa experiência aqui”, afirma Pagú, que também produziu obras do tipo com Hanna Lucatelli e Zezão, no Minhocão. Os trabalhos foram patrocinados pelo laboratório que produz o remédio Coristina D e pela fabricante de malas Samsonite, respectivamente. Felipe Yung, o Flip, que é quem assina as composições do Aquário Urbano, segue na mesma sintonia. “Estou trazendo uma explosão de cores para o dia a dia das pessoas”, explica o grafiteiro.
O argentino Tec, que vive na capital paulista, tentou esse tipo de parceria em 2015, quando viu nos prédios no entorno do Minhocão a possibilidade de um grande museu a céu aberto. Buscou alternativas, mas se frustrou e resolveu fazer de maneira independente. “Queriam intervir no processo criativo, até pediram que usasse determinadas cores e elementos gráficos. Ainda achavam que era publicidade.” Achou na garagem de casa a solução para financiar a empreitada, em torno de 30 000 reais: tintas e seu carro, o qual pôs à venda. “Para encontrar um imóvel que aceitasse receber a obra, conversamos com síndicos, participamos de reuniões de condomínio”, relembra o artista, que descobriu o local ideal no Edifício Mercúrio, na Rua Amaral Gurgel. Lá, em uma área de 64 metros de comprimento por 20 de largura e com 150 litros de tinta, deu vida em um mês ao retrato de um personagem cinzento, que parece concentrar no rosto toda a malha viária de São Paulo. Agora, quatro anos depois, Tec quer subir no andaime novamente. “Estamos negociando. Mas o mercado está mais acirrado, vai ser difícil”, resume.
Essa disputa por espaço e projetos com patrocínio tem ajudado síndicos que buscam no negócio benefícios que vão do aprimoramento externo do imóvel a reformas necessárias e renda extra. Eles viram nos murais uma chance para conseguir melhorias para os edifícios que comandam. Fabio Orzi negociou para que a fachada do seu prédio, na Avenida São João, recebesse um grafite. A homenagem aos 100 anos de Nelson Mandela na lateral, feita por Diego Mouro e Criola, rendeu uma limpeza com máquinas de alta pressão na fachada do condomínio e na de duas construções vizinhas. Outro edifício, comandado por Erotildes Rangel, na Consolação, ganhou a reforma da parede que recebeu o desenho e a troca das telhas do estacionamento ao lado, totalizando cerca de 13 000 reais, além do mural do grafiteiro Pomb. Há também quem receba apenas o benefício estético. Elton Monezi, morador do Edifício General Jardim, conta que foi ele quem procurou os artistas para receber uma obra. “O prédio tem mais de sessenta anos e a parede estava sem pintura. Foi projetado por Artacho Jurado, mas ficou um pouco esquecido.” Depois de descartar o jardim vertical, assinou o contrato com Pagú. O resultado foi a empena do artista Zezão. Há ainda os condomínios que procuraram as produtoras e estão na fila para receber um mural. O britânico Anthony Jarvis, que vive no Largo do Arouche, resume o sentimento: “As pinturas são muito bonitas. Se também oferecem melhorias para o prédio, é algo sensacional”.
Começar e finalizar um projeto como esse, no entanto, não é fácil. É preciso, por exemplo, cumprir determinações de uma resolução da Comissão de Proteção à Paisagem Urbana. “As intervenções não poderão apresentar referências ou mensagens de cunho ofensivo, pornográfico ou discriminatório, nem exibir ou fazer referência indireta a nomes, marcas, logos, serviços ou produtos comerciais”, indica a regulamentação. Se a lateral do prédio está degradada, a primeira etapa é um processo que pode ultrapassar a soma de 8 000 reais. Ele inclui raspagem da superfície, a feitura do reboco e a aplicação de tinta contra infiltrações. Depois tem a projeção na parede, que serve de referência para que sejam feitos os contornos dos desenhos que serão preenchidos. Gasta-se também com a estrutura que leva os artistas e seus assistentes para as alturas. Nessa parte, é preciso definir se serão utilizados andaimes modulares, balancinhos de obra (do tipo “cadeira de rapel” ou tablados isolados) ou mesmo plataformas elevatórias. Em um cálculo estimado, os gastos podem ir de 20 000 a 70 000 reais e ainda movimentam o mercado das empresas que prestam esses serviços. Ana Thum, gerente de uma firma que oferece os equipamentos, contabiliza dez projetos de murais em empenas nos últimos dois anos. “Temos trabalhado mais com iniciativas desse tipo. Há pouco, elaborei o orçamento para mais uma. É de um artista chamado Binho Ribeiro”, revela a funcionária. O grafiteiro faz ainda outro paredão, na Alameda Lorena, bancado por uma empreiteira.
Não só grafiteiros profissionais preparam suas próximas investidas. O músico Arnaldo Antunes também vai deixar o horizonte mais leve e colorido. Em novembro, o ex-titã, que fez uma parceria e doou seu cachê em troca de 80 000 reais de investimento do produtor, estampa na lateral de um prédio na Rua Duque de Caxias, no centro, um poema concreto. Com caligrafia que remete à pichação, o pequeno texto se chama Apenas Pensa. Ele antecederá outros paredões programados pela Secretaria Municipal de Cultura, na segunda edição do Museu de Arte de Rua (MAR). Há previsão no projeto de um mural inspirado em João Gilberto (1931-2019), um conjunto de intervenções baseadas na produção de Tarsila do Amaral (1886-1973) e um painel que homenageia o arquiteto Joaquim Pinto de Oliveira (1721-1811), conhecido como Tebas. A empena será pintada pelo grupo OPNI, de São Mateus, na Zona Leste da cidade. “A gente sempre fica à margem. Quando vamos para o centro, trazemos esse holofote para a periferia”, comemora Val, um dos fundadores do coletivo.
Produção em dupla
Marina Bortoluzzi e Marcelo Pimentel são os fundadores do Instagrafite, uma das produtoras que fazem a intermediação entre empresas, artistas e prédios. Agora, expandem o negócio para outras capitais. Daqui a três meses, projetam nova empreitada, mas em Goiânia (GO). A empresa contratante e o artista que vai deixar sua marca não podem ser ainda divulgados.
SP submersa
O produtor paulista Kleber Pagú é um dos idealizadores do Aquário Urbano, projeto que prevê a realização de quinze murais na Rua Bento Freitas. Neste ano, ele também produziu dois murais no Minhocão. Um, da artista Hanna Lucatelli, traz uma mulher e a palavra coragem e foi patrocinado por farmacêutica.
Menos um carro
Antes da onda dos patrocínios, o grafiteiro argentino Tec vendeu seu carro para arrecadar fundos para pintar em um prédio do Minhocão seu primeiro mural. A obra, que levou um mês para ficar pronta, está lá até hoje. Retrata um homem que parece uma múmia. Em vez de faixas, ele tem pistas de carro no rosto. Agora, Tec quer voltar ao andaime.
Um novo festival
O empresário Luan Cardoso produziu os três últimos paredões coloridos, feitos pelo grafiteiro Speto. A derradeira obra está na Rua Saint Hilaire (2019), no Jardim Paulista. Para 2020, o paulistano organiza um novo voo. O Festival NALATA prevê quinze intervenções de grande porte na região central da cidade, com patrocínio do mundo corporativo.
Novo mural em Pinheiro
Vera Santana já atuou na produção de doze murais, entre eles Educação Não É Crime (2016). O próximo, feito com a jovem grafiteira Prila Maria, deve sair em 2020, em Pinheiros. O orçamento, cerca de 60 000 reais, deve ser custeado pelo capital privado.
Trio empreendedor
Victor Nomura, Rafael Araújo e Jean Paschalis tocam a Dionisio Arte, produtora responsável por dois painéis lançados neste ano com patrocínio da Veloe, braço da Alelo para o pagamento de pedágios e estacionamentos. Uma obra fica na Rua da Consolação e a outra, localizada na Avenida Rio Branco.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 20 de novembro de 2019, edição nº 2661.