Moemers: a convivência entre família tradicional e mercado do sexo
Um dos bairros mais certinhos (de dia) e mais libertinos (à noite), com 93% de moradores em apartamentos, teve seu cotidiano chacoalhado pela quarentena
Um dos bairros mais certinhos da cidade (durante o dia) e mais libertinos (à noite) teve seu cotidiano chacoalhado pela quarentena. O tal bairro dúbio é um pedaço de São Paulo que tem o índice de desenvolvimento humano mais alto que o da Noruega, mas lida com assaltos, enchentes, trânsito e outros atrasos tão tipicamente brasileiros. É um dos mais verticalizados de São Paulo, embora, ocupado por apartamentos enormes, seja menos populoso por quilômetro quadrado que regiões como Vila Mariana ou Mooca. É servido por duas estações de metrô, que são pouco usadas. Tem por morador-símbolo a família tradicional de classe média alta, mas é o principal point de swing da capital, além de contar com uma ampla rede de prostituição em flats, ruas e boates. Moema não é um bairro de fácil classificação — como mostram os moemers nesta reportagem.
O pujante mercado local do sexo, por sinal, não “esfriou” na quarentena. A alternância pendular de prostitutas à luz do dia e travestis à noite jamais deixou de acontecer na Avenida Indianópolis, uma das arestas do quadrilátero que delimita Moema (as outras são as avenidas Rubem Berta, Santo Amaro e dos Bandeirantes). “Antes, fazíamos de cinco a sete programas por noite. Agora, são ao menos quatro”, diz Nathalie Kuz, 29, que faz ponto na região seis noites por semana.
Na ponta mais sofisticada desse mercado, que normalmente opera nos flats da Ibirapuera e da Avenida Jandira, algumas profissionais inclusive passaram a fazer uma espécie de home office do sexo. “Os flats eram alugados de maneira eventual pelas garotas. Mas, nesse período, algumas se mudaram para as unidades que alugo”, diz o investidor Cláudio Thiago Menezes, 38, dono de cinco imóveis rotativos no bairro. “Elas entregaram seus apartamentos e passaram a morar nos flats, para não pagar dois aluguéis”, conta ele.
No Bahamas, um dos mais conhecidos redutos de prostituição da capital (mas nem de longe o único de Moema), as atividades retornaram de maneira tímida na boate, mas seguem animadas no hotel anexo. Já os seis clubes de swing que transformaram a vizinhança no maior point de troca de casais da cidade reabriram em julho e seguem os protocolos definidos pelo governo do estado.
A relação entre os profissionais do sexo e as famílias de classe média alta do bairro nunca foi totalmente pacífica. “Moema tomou esse rumo por dois fatores. Primeiro, a proximidade do Aeroporto de Congonhas, que resultou na construção de flats para executivos, o que atrai garotas de programa”, diz Menezes — que, entre 2006 e 2007, foi sócio investidor de um bordel na Ibirapuera, uma franquia de uma marca americana chamada Solid Money, que depois teve o terreno vendido para a construção de um edifício. “Além disso, tem o efeito ‘mercado de referência’. Todo mundo já sabe que existem esses serviços em Moema, o que se torna um ímã para clientes e profissionais”, ele acredita.
Para os moradores mais tradicionalistas, porém, esse mercado prejudica a tão propalada qualidade de vidados moemers. “Com a prostituição, vêm os pontos de drogas, os assaltos e outros problemas”, afirma o aposentado Paulo Bizzo, que faz parte de um grupo de 110 síndicos de Moema que atua para combater os travestis do trecho conhecido como “Moema-índios”, a metade do bairro compreendida entre a Ibirapuera e a Rubem Berta e cujas ruas têm nomes indígenas — a outra metade é apelidada de “Moema-pássaros”. (Os nomes foram uma homenagem à Mata Atlântica e aos povos originais da região, feita pelo engenheiro Fernando Arens Júnior, que comprou terras ali em 1915.)
É claro que o PIB sexual não é o único a movimentar o bairro nesses últimos meses. Mesmo em tempos de pandemia, o perfil dos consumidores de alta renda dos moemers segue atraindo novos negócios à região, desde startups inovadoras até comércios e serviços tradicionais. “A maioria dos bares da região é fechada, com aquela cara elitizada. Quis fazer algo mais rústico”, diz Nelson Marques, 45, que inaugurou um bar de 140 metros quadrados na Rua Canário no início de setembro, após um investimento de 700.000 reais. “A pegada do local é chinelo, bermuda e cachorro. O bairro está mudando, as pessoas querem estar mais à vontade.”
“Bateu o desespero no comércio. aí apelamos aos moradores: ‘quem é de Moema fica em Moema’.” Rosimeire Lage, da associação Juntos por Moema
Na tentativa de retomada econômica, até um clima meio nacionalista se apossou dos comerciantes do bairro. “Quem é de Moema fica em Moema”, diz uma campanha da associação Juntos por Moema, que faz um apelo aos moradores para dar preferência ao consumo local. Idealizado por Rosimeire Lage, 44, o movimento começou em um grupo de WhatsApp com dicas do pedaço — e se tornou, ele próprio, um negócio na pandemia. “Os comerciantes começaram a pedir ajuda, bateu o desespero. Criamos redes sociais e um site que virou um guia. Temos cerca de 400 empresas cadastradas”, diz a empresária, que cobra 200 reais por mês para a divulgação dos negócios moemers.
A quarentena também virou um desafio para a rotina doméstica do bairro, uma vez que 93% dos moradores vivem em apartamentos. “Nos primeiros meses, as ruas ficaram bem desertas — circulavam apenas motoboys e algumas babás com crianças. O pessoal só voltou a caminhar pelas calçadas a partir de junho”, diz Simone Boacnin, presidente da associação Viva Moema, que ajudou a organizar doações na pandemia —o pai dela, Manoel Abílio Oliveira, 78, é uma das mais de 130.000 vítimas da Covid-19 no país. “Em um bairro tão verticalizado, teve muita confusão nos condomínios”, ela conta. “As pessoas se sentiram engaioladas, se tornaram intransigentes e passaram dos limites. Uma acusava a outra nas redes sociais devido ao barulho, a polícia baixava nos prédios…”, relembra.
“As empresas venderam Moema como o ‘bairro do futuro’. e optaram pelas metragens maiores.” Glauco Rocha, arquiteto e autor do livro da prefeitura sobre o bairro
A verticalização de Moema é fruto das primeiras leis de zoneamento da cidade, do finalzinho dos anos 1950. As normas da época passaram a restringir novos edifícios na região central, o que levou a cidade a se espraiar — condenando os futuros paulistanos aos congestionamentos. “Moema ainda era um lugar periférico, com terrenos baratos, o que atraiu as construtoras”, explica o arquiteto Glauco Rocha, autor de um livro sobre o bairro disponível no site da prefeitura. “Essas empresas privilegiaram os grandes apartamentos”, ele diz. O perfil 400-m²-com-quarto-de-empregada-e-quatro-vagas passou a caracterizar a região. Por isso, apesar de verticalizada, Moema é menos povoada que Perdizes ou Santa Cecília (tem 9,2 mil habitantes por quilômetro quadrado, versus 18 mil e 21,4 mil dos outros dois). Acrescentem-se a isso os recuos obrigatórios criados no período militar e tem-se o aspecto de paliteiro: espigões magrinhos e altos, mas com poucas famílias e IPTUs caros (veja mais detalhes nos mapas abaixo).
Os recuos por todos os lados também resultaram em prédios afastados das ruas, com grades e sem comércios no térreo. As vitrines e mesinhas nas calçadas, comuns em bairros mais antigos, são raras. Teatros? Nenhum. Cinemas, apenas as salas do Shopping Ibirapuera (reabertas em 2019, após os moemers passarem 15 anos sem nem um cineminha). Para piorar, a verticalização dos anos 1970 a 1990 deu-se como uma linha de montagem pouco inspirada. Apesar de ser um bairro de classe alta, Moema nunca frequentou as revistas de arquitetura, como Higienópolis. Não ganhou ícones como o Louveira ou o Prudência — tendo, no lugar, o Maison Disso ou o Château Daquilo.
“É bom o metrô, mas não uso. Levei meus filhos para andarem pela primeira vez.” Fábio Corrêa, morador de um condomínio próximo à estação Eucaliptos
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Moema também acabou vítima dos congestionamentos criados pelas mesmas leis que originaram a freguesia. Os dois novos metrôs da Avenida Ibirapuera (Eucaliptos e Moema) ainda têm uso bem abaixo do de outras estações (20.000 pessoas/dia, versus 50.000 na também recente Butantã). Quem sabe essa realidade mude comas novas gerações de moemers. “Acho ótimo ter a estação, mas não pego muito. Usei para levar meus filhos para passear pela primeira vez de metrô”, conta Fábio Corrêa, 46, morador de um condomínio próximo à parada Eucaliptos, que opta pelo carro no dia a dia. “No nosso caso, o metrô ainda é só entretenimento”, explica.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 23 de setembro de 2020, edição nº 2705.