Força-tarefa caça festas clandestinas e conta com infiltrados para descobrir local de eventos
Pandemia transforma policiais civis e militares e agentes de saúde em fiscais de baladas e de estabelecimentos irregulares
Quando a polícia chega, o primeiro a dar as caras é o aríete. Baixinho e gordinho, ele não é nenhum agente da lei, mas o nome de um cilindro de ferro, de cerca de meio metro de comprimento e com pouco mais de 10 quilos, usado para arrombar portas. O alvo da vez: uma balada localizada no Tatuapé, que abre para 150 pessoas como se não houvesse em curso uma pandemia que já matou mais de 23 000 pessoas na capital.
Atrás do aríete, aí, sim, aparecem os policiais civis e militares, guardas metropolitanos, fiscais da vigilância sanitária estadual e municipal, funcionários do Procon e da prefeitura paulistana, além de representantes do Ministério Público e da Ordem dos Advogados do Brasil. O deputado federal Alexandre Frota (PSDB) também faz parte do grupo recém-criado pelo governador João Doria e que ganhou o nome de Comitê de Blitze. Em março, a força-tarefa encerrou 943 eventos com aglomerações em locais fechados no estado, dos quais mais de 70% na capital.
A ação mais barulhenta de todas foi a que resultou no fechamento de um cassino clandestino no Itaim Bibi, local que contava com a presença do jogador Gabriel Barbosa, o Gabigol, do Flamengo. O funkeiro MC Gui também estava no espaço. Assim como o atleta e o músico, mais de 3 000 pessoas foram fichadas no mês passado e vão responder na Justiça por infringir normas sanitárias.
Além de fechar estabelecimentos fixos, regulares ou não, os membros da força-tarefa estão de olho nas festas clandestinas itinerantes, cujos convites pipocam todos os dias na internet. Realizados por DJs e organizadores que estão há mais de um ano sem poder atuar de forma legal, os eventos são divulgados por redes sociais fechadas e grupos de WhatsApp.
Nos últimos dias, Vejinha circulou por diversas páginas e verificou a forma como esses eventos são produzidos e promovidos. Independentemente da região e da classe social, os organizadores usam a mesma forma: sem informar o endereço previamente, pedem pagamento antecipado via Pix. Os valores variam conforme o porte da festa: vão de 30 a 200 reais.
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“Contamos com ambulatório, socorristas, equipes treinadas e especializadas para atendê-lo da melhor forma possível”, diz um dos anúncios de uma festa que ocorreria no fim de semana passado. Detalhe para o horário extenso da balada: das 22h às 10h. “O endereço será divulgado momentos antes dessa vibe incrível”, conclui o anúncio do evento, que foi desmarcado sem justificativa aparente. Procurado, o organizador da festa não respondeu às mensagens da reportagem.
A localização das festas por parte da força-tarefa é um dos principais desafios. É aí que entra o trabalho do deputado Alexandre Frota, que afirma ter recebido em sua página no Instagram mais de 3 000 denúncias de aglomerações nos últimos meses. “Fazemos a triagem, separamos os eventos por gênero e minha equipe compra ingressos e se infiltra nas festas”, afirma o parlamentar. “A partir daí, eles nos detalham quais as características do local, se há seguranças armados, quantas rotas de fuga existem. De posse das nossas informações, a força-tarefa chega e pode fazer a operação com mais tranquilidade, sem riscos à segurança de todos. Tenho carta branca do governador para atuar como um hunter das festas clandestinas.”
reais é o valor da multa por pessoa sem máscara em um local fechado
Muitas vezes o endereço que é divulgado uma hora antes não é o do evento. “Outro dia fomos a uma festa marcada para ocorrer na Avenida Atlântica, em Interlagos, mas chegando lá uma pessoa apareceu e nos deu outro endereço. Esse segundo lugar era um estacionamento. Deixamos nosso carro lá e entramos em uma van escura. Só assim chegamos à festa, mas sem saber o endereço”, diz um dos membros da “frota do Frota”, como ficaram conhecidos entre os policiais.
No último fim de semana, outro integrante do grupo foi interpelado por um segurança, que lhe pediu documentos e perguntou onde morava. “Estamos ficando manjados”, diz. A técnica de despiste, chamada de “gincana”, remete a ocorrências típicas de ações criminosas. “Esse negócio de ir de um lugar para o outro parece técnica de sequestro. O sequestrador fala para a família da vítima ir a tal orelhão, depois pegar o ônibus tal e deixar o dinheiro em tal lugar”, diz o delegado Eduardo Brotero, um dos responsáveis pelo braço policial da força-tarefa.
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Quando entram nos locais de eventos fechados, os policiais e demais agentes deparam com situações propícias para a disseminação do coronavírus. “Eles fumam narguilé, que é passado de boca em boca. Todo mundo fuma aquilo. Compartilham copos, usam drogas, parecem estar em outro mundo”, diz o delegado Osvaldo Nico Gonçalves, diretor do Departamento de Operações Policiais Estratégicas (Dope).
Numa balada da Zona Norte, por exemplo, cada equipamento de narguilé era alugado por 30 reais. Com apenas um bocal, a piteira era compartilhada por mais de dez pessoas. “Quando chegamos às festas, uma das primeiras coisas que fazemos é distribuir máscaras para todos. Há casos em que chegamos a distribuir mais de trezentas. Se não fizermos isso, eles passam coronavírus para a gente.”
A preocupação com a contaminação dos membros da força-tarefa é grande. No Procon, dos vinte profissionais que fazem parte das ações de fiscalização, cinco estão em casa após diagnóstico de Covid-19. “Vai caindo um por um e daqui a pouco ficaremos sem nenhum fiscal”, reclama o diretor do órgão de proteção ao consumidor, Fernando Capez. “Pedi ao governador que esses agentes possam ser vacinados. Só esses.”
De posse das nossas informações, a força-tarefa chega e pode fazer a operação com mais tranquilidade, sem riscos à segurança de todos
Alexandre Frota
As ações de combate a festas e aglomerações, principalmente as ocorridas em cassinos e bingos clandestinos, jogaram luz sobre uma questão ainda sem resposta. Como essas casas funcionam sem que as autoridades deem conta de sua existência? Segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo, um grupo de policiais do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) é suspeito de vender segurança para dezesseis estabelecimentos desse tipo, incluindo o “cassino do Gabigol”, como o espaço em que o jogador estava (e que não lhe pertence) ficou conhecido.
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O trabalho renderia ao grupo 1,5 milhão de reais por mês. Procurado, o delegado-geral de Polícia Ruy Ferraz Fontes diz que as acusações não procedem. “Já foi investigada pelo MP e foi arquivada. Os policiais mencionados não trabalham no Deic desde o meio de 2019 e existem diversas incongruências sobre as denúncias.” Questionado sobre quais serias as incongruências, Ferraz não as detalhou.
Enquanto o foco nas festas fechadas ganha as páginas policiais, uma aglomeração tão antiga quanto as cartelas de bingo continua ocorrendo de forma desordenada na periferia. “Fechar barzinho e comércio é fácil, quero ver brecar o pancadão que vem acontecendo desde sexta (2) na Avenida Naylor de Oliveira, ao lado do Terminal Cidade Tiradentes”, diz uma postagem realizada em um grupo com o nome do bairro. Ali, centenas de jovens passam a madrugada sem preocupação alguma com a disseminação do vírus que matou no Brasil, na última terça-feira (6), mais de 4 200 pessoas.
“O pancadão na rua é mais difícil de ser contido do que a festa fixa, pois se tomarmos uma determinada rua de alguma comunidade, por exemplo, para evitar a aglomeração, as pessoas vão para quatro, cinco quarteirões adiante. Não há soluções simples para problemas complexos. Para resolver a questão dos pancadões deveria haver uma ação conjunta entre prefeitura e estado”, diz Álvaro Camilo, secretário executivo da Polícia Militar.
Mesmo assim, ele afirma ter obtido êxito em conter pancadões em Paraisópolis nas últimas duas semanas. “Estão dando atualmente uma visibilidade grande para a Polícia Civil, pois o delegado (Osvaldo) Nico tem bastante contato com a imprensa e costuma aparecer bastante, mas a Polícia Militar fez 87 000 abordagens de dispersões de aglomerações desde o dia 26 de fevereiro”, alfineta.
Caçar festas parece ser um trabalho sem fim.
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Publicado em VEJA São Paulo de 14 de abril de 2021, edição nº 2733