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Desmatamento ilegal abre espaço para condomínios clandestinos nas represas

Dezenas de novos empreendimentos em áreas de mananciais evidenciam o poder de criminosos e o descaso das autoridades municipal e estadual

Por Sérgio Quintella Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 2 nov 2020, 16h44 - Publicado em 23 out 2020, 06h00

Enquanto o Brasil é notícia no mundo todo devido ao desmatamento recorde da Amazônia e à queimada no Pantanal, São Paulo tem uma devastação silenciosa, ampla, criminosa e em pleno curso sem holofotes. Em áreas remotas localizadas às margens das represas Billings e Guarapiranga, na Zona Sul, dezenas de “condomínios” ilegais estão em construção sem que o poder público municipal e estadual impeça seu andamento. São geralmente espaços particulares localizados em áreas de proteção ambiental que sofrem há décadas com a ocupação desordenada. A diferença com o passado é que os negócios ganharam escala e são vendidos como loteamentos fechados.

Área rural (no alto) deu espaço a um loteamento de 130 000 metros quadrados (acima) na Vila Gilda. No destaque, árvores que foram cortadas em local que deverá abrigar novos empreendimentos: anúncios em pontos de ônibus (Google Street View/Sérgio Quintella/Veja SP)

No final da Estrada da Cumbica, na esquina com a Estrada do Bem-Te-Vi, na Vila Gilda, bairro rural pertencente ao Jardim Ângela, um terreno de 130.000 metros quadrados (do tamanho do Parque da Água Branca), que antes abrigava chácaras com vegetação nativa e está a pouco mais de 100 metros de um braço da Guarapiranga, vai dar lugar a lotes para 345 casas. A falta de autorização ou autuação da municipalidade não é impeditivo para as diversas fases da obra, do desmatamento-relâmpago ao anúncio feito por “corretores” do pedaço.

Futuro “condomínio” na Estrada da Cumbica: poucos metros separam as obras das águas da represa (Marcelo Sonohara/Veja SP)

345 casas serão construídas em área onde antes existiam sítios; entorno não tem infraestrutura e as ruas são de terra

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Um deles, chamado William, divulga a empreitada clandestina em cartazes “lambe-lambes” colados em pontos de ônibus e em postes da região. As redes sociais e sites de comércio on-line também são utilizados. “Para você eu faço o terreno por 20.000 (reais) à vista. O preço oficial é de 50.000 reais. É pegar ou largar”, afirma o sorridente vendedor, por telefone, que diz indicar bons construtores para erguer as casas. Parcelado, o valor da terra sobe um pouco, para 25.000 reais, e pode ser pago por meio de boleto bancário por até quatro anos. “Entregaremos o condomínio em no máximo um ano, com toda a infraestrutura de água, luz, esgoto, energia”, promete William. Só faltou combinar com o entorno, cercado por ruas de terra, sem iluminação pública, transporte coletivo, serviços e comércios. Questionado se aceita pagamento via Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), a resposta é, claro, negativa. “Não temos a escritura individual dos lotes, somente a documentação total.” Com a venda dos 345 terrenos, o negócio vai gerar um faturamento bruto de 6,9 milhões de reais.

Local conhecido como Parque do Lago foi descampado e abrigará dezenas de casas (Marcelo Sonohara/Veja SP)

Em um raio de 3 quilômetros dali, outros dois empreendimentos ilegais, um no Jardim Aracati e outro no Parque do Lago, também possuem características (e tamanho) semelhantes. O segundo deles está localizado em um grande barranco, vizinho ao Parque Municipal do M’Boi Mirim. “São grupos interligados. Eles compram uma área matriculada de um dono, montam uma associação fajuta de moradores, pegam uma pessoa qualquer, um laranja, que vai ser o representante da associação, e começam a vender a terra”, afirma uma moradora que vive no pedaço e pede anonimato. “O processo de devastação começa com uma queimada e depois vem o corte das árvores. Na sequência eles passam o trator e abrem as ruas. Quando chega fim de semana ou feriado prolongado, eles aproveitam para atuar mais, sabendo que a fiscalização trabalha com escalas reduzidas.” Vejinha esteve na região por diversas vezes nas duas últimas semanas. Ao lado do “empreendimento” da Estrada da Cumbica, uma nova devastação começou no último fim de semana e pode ter o mesmo destino dos antigos sítios da vizinhança.

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“O pessoal fala da boiada do (Ricardo) Salles (ministro do Meio Ambiente), mas essa que está passando nos nossos mananciais é grande e encorpada.” – Gilberto Natalini

Não é por falta de denúncias que empreendimentos desse tipo deixam de pipocar pela metrópole. Em abril deste ano, o vereador Gilberto Natalini (sem partido) publicou a segunda edição de um relatório que aponta a ligação do desmatamento com a atuação do crime organizado. O documento lista 160 áreas devastadas para a criação de loteamentos clandestinos na capital, a maioria no entorno das represas Billings e Guarapiranga. São ao todo 7,2 milhões de metros quadrados de área verde suprimida, mapeada com imagens aéreas. O número corresponde a quase cinco vezes o tamanho do Parque Ibirapuera (ou à soma de Pacaembu, Jardim América, Alto de Pinheiros e Alto da Lapa). No lugar das árvores cabem 48.000 lotes de 150 metros quadrados cada um. O faturamento obtido no negócio pode passar de 1,9 bilhão de reais, calcula o vereador, com base no valor médio de 40.000 reais por unidade. “Eu mandei o dossiê para mais de 700.000 pessoas por e-mail, WhatsApp, Instagram e Facebook. Para o exterior foram 600 cópias, incluindo o Parlamento Europeu, o Bono Vox e até o papa”, diz o parlamentar, que desistiu de concorrer à sexta eleição seguida. “O pessoal fala da boiada do (Ricardo) Salles (ministro do Meio Ambiente), mas essa que está passando nos nossos mananciais é grande e encorpada. Calculamos 1,2 milhão de árvores derrubadas, mas a questão não é só árvore, é água. As nascentes em breve vão para o espaço e ninguém dá bola.”

Publicidade encontrada pelas ruas dos bairros no entorno das represas Billings e Guarapiranga: não aceitam FGTS (Divulgação/Divulgação)

A estimativa das árvores derrubadas levou em conta a existência de uma unidade arbórea a cada 6 metros quadrados. Procurados, os governos estadual e municipal, ambos do PSDB, se limitaram a enviar uma nota. O primeiro, por meio da Polícia Militar (o secretário estadual do Meio Ambiente, Marcos Penido, não quis conceder entrevista), afirma que realiza ações periódicas de fiscalização ambiental na região Sul. A gestão de Bruno Covas diz fazer vistorias em loteamentos irregulares e cita como exemplo uma multa de 3 milhões de reais aplicada a uma empresa que vende lotes clandestinos em Parelheiros, em um local conhecido como Sítio Irma.

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O espaço, com 350.000 metros quadrados (o triplo do Parque do Povo, no Itaim), dos quais 140.000 foram desmatados, está localizado na Estrada da Colônia. Apesar da multa imposta pela municipalidade, os lotes continuam sendo comercializados. O preço ali: 40.000 reais. Para visitar o espaço, é necessário agendar previamente. Na entrada, além do documento de identidade, o candidato a comprador tem o rosto fotografado. Próximo dali, o sossego de um servidor público de 59 anos está com os dias contados. Ao lado de sua casa, Luiz Ramos Roschel passou a conviver nas últimas semanas com a abertura clandestina de uma rua (até então sem saída), um dos sinais de que a boiada está passando pelo pedaço. “Eu saí para trabalhar de manhã e, quando voltei, depois do almoço, o clarão estava aberto. No fim da tarde ouvi o barulho da bichinha tombando”, lamenta, referindo-se a mais uma árvore derrubada de forma clandestina.

“No fim da tarde ouvi o barulho da bichinha tombando.” Luiz Ramos Roschel (Leo Martins/Veja SP)

A primeira sensação de quem vê atos criminosos ocorrerem ao lado de casa é denunciar, mas o receio de retaliação impera. “Entraram três vezes na casa de um vizinho depois que ele foi reclamar dos cortes de árvores. Depois disso ele parou de se queixar e pararam de atormentá-lo”, afirma o morador de um sítio em Parelheiros. “Outro dia eu fui mexer em uma samambaia que estava em uma mata perto de casa e a Polícia Ambiental queria me prender. Eu fui lá para retirá-la e plantá-la em outro local, pois esse ponto começou a ser devastado. Ou seja, eu não posso salvar a planta, mas os criminosos podem derrubar uma floresta inteira”, diz o homem, que teme represália. Outra queixa dele é em relação aos animais silvestres, que perdem suas casas feitas em árvores.

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(Leo Martins/Veja SP)

A chegada de novos moradores a áreas de mananciais já começa a refletir em índices da qualidade da água nas duas represas. “Na Guarapiranga, regiões que em 2018 estavam com 3 metros de profundidade, hoje estão com 1 metro, 80 centímetros. Está certo que o reservatório está baixo, mas nem durante a estiagem de 2015 (que resultou em grave crise hídrica) vimos o nível de assoreamento tão grande”, afirma a bióloga Marta Marcondes, professora da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, que registra há cinco anos o estado da água nas duas represas. Outro problema levantado por especialistas é o risco de construções cada vez mais próximas às margens das represas. “É uma região muito instável. Hoje, por causa da seca, a água está mais longe, mas já vimos grandes enchentes em vários outros anos”, diz Malu Ribeiro, coordenadora da Rede das Águas da Fundação SOS Mata Atlântica.

Abertura irregular de rua em Parelheiros: primeiros sinais de devastação (Leo Martins/Veja SP)

Os bairros de Parelheiros (153 quilômetros quadrados) e Jardim Ângela (62 quilômetros quadrados) representam 14% do território da cidade. São os verdadeiros pulmões de São Paulo, sem o status merecido. Juntos, correspondem a 35 vezes o tamanho de Perdizes e 23 vezes o de Moema. De um total de 31 distritos, Jardim Ângela figura na posição 28 no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Os dados são do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Parelheiros é o último. A depender das subprefeituras para o combate ao desmatamento e aos loteamentos ilegais, os dois bairros poderão ficar a ver navios. Segundo proposta enviada pelo prefeito Bruno Covas à Câmara, Parelheiros ficará em 2021 com um orçamento de 25 milhões de reais (ante 42 milhões em 2020, uma queda de 40%). M’Boi Mirim (que engloba Jardim Ângela) terá 27 milhões de reais a menos, sobrando-lhe 30 milhões de reais, um corte de 46%. Exceto o Itaim Paulista, nenhum outro distrito da cidade terá tanta redução orçamentária.

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Área de desmatamento na Zona Norte: dossiê apontou 7,2 milhões de metros quadrados devastados (Gilberto Natalini/Divulgação)

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Publicado em VEJA SÃO PAULO de 28 de outubro de 2020, edição nº 2710.  

 

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