Avenida Paulista, o novo paraíso dos camelôs
Repórter de VEJA SÃO PAULO trabalha de ambulante na Paulista para mostrar como funciona o novo paraíso do comércio informal na metrópole
Com uma circulação de aproximadamente 1,5 milhão de pessoas por dia, a Avenida Paulista é um dos espaços mais valorizados da cidade. Ali, o custo mensal de locação do metro quadrado para lojas gira em torno de 70 reais, o mais alto da metrópole, segundo o Zap, índice de referência do mercado. Mas a turma que vem tomando a via nos últimos tempos não paga absolutamente nada para estar no local. Um pedestre distraído pode tropeçar nas mercadorias dispostas na calçada, tamanha a concentraçãode toda sorte de quinquilharias.
De segunda a sexta, mais de 150 barraquinhas apresentam adornos, comidas, bebidas, DVDs piratas e uma grande variedade de produtos no principal cartão-postal da metrópole. Aos domingos, o número chega perto de 400. Para mostrar os personagens e o funcionamento desse novo paraíso do comércioinformal, atuei como camelô por lá entre abril e maio. Oferecia bijuterias de fundo de quintal em um tablado, variando de esquinas a cada jornada de trabalho. No período de quase um mês, fui intimada por concorrentes que não queriam dividir o “ponto”, conheci gente que fatura até 3 000 reais por mês, constatei várias irregularidades e nenhum tipo de fiscalização sobre o movimento.
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O primeiro regulamento específico para a atividade de ambulantes em São Paulo surgiu em 1898. Naquela época, esse tipo de comércio concentrava-se no centro. No fim da década de 70, a Paulista recebeu as primeiras barraquinhas. Entre 1997 e 2012, alternaram-se períodos de grande repressão e de “vistas grossas” do poderpúblico ao problema. Em maio de 2013, o prefeito Fernando Haddad assinou a Lei No 15 776, o que liberou o espaço para artesãos venderem artigos na cidade. O interessado precisa fazer uma prova prática em um órgão municipal, a Subsecretaria do Trabalho Artesanal nas Comunidades (Sutaco), a fim de receber uma habilitação.
Na teoria, o negócio foi criado para o candidato demonstrar suas habilidades diante de especialistas. Isso ajudaria a barrar espertalhões com o intuito apenas de lucrar sem pagar impostos. Na prática, essa avaliação é feita de forma totalmente superficial. Qualquer um pode passar pelo crivo. Com a ajuda de vídeos no YouTube,aprendi uma forma rudimentar de tecer pulseirinhas. Em 7 de abril, depois de uma demonstração de quarenta minutos, tirei a carteirinha número 87 629 (veja o quadro na pág. 40). Na sequência, comprei uma mesa por 58 reais na Rua 25 de Março e teci trinta peças, formando meu estoque inicial. Estreei na calçada da Avenida Paulista cinco dias depois.
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Há algumas regras básicas para quem vai montar um “escritório” na via. Nada de armar barraca em cima de bueiros e a pelo menos 5 metros de distância de pontos de ônibus, orelhões, estações de metrô, hospitais, farmácias e faculdades. Só que ninguém respeita essas leis. É também solenemente ignorada a determinação do governo municipal de limitar a atividade dos ambulantes a cinquenta espaços, que ficam demarcados com tinta amarela nas calçadas da Paulista. Ou seja, poderiam atuar, no máximo, cinquenta camelôs por ali. No dia a dia, a quantidade chega a ser oito vezes maior. O menu de opções gastronômicas oferecidas inclui brigadeiro,tapioca, milho e bolo, entre outros. Para acompanhar, água, cerveja e refrigerante. Tudo também vetado pela prefeitura. Na mesma categoria dos proibidos encontram-se itens manufaturados, de pilhas a massageadores, facilmente encontráveis por lá, assim como banquinhas de CDs piratas.
O aumento do desemprego no país funciona como combustível da tomada da Paulista pelos ambulantes. A fila na Sutaco é um bom indicador. De um ano para cá, a procura pela licença de camelô cresceu 40% (são emitidas mais de sessenta carteirinhas por semana). Com isso, a espera atual para agendar a prova é de dois meses, em média. “Vim para São Paulo em 2013, época em que o Brasil era um país em ascensão”, diz Ramazan Serin. Formado em administração de empresas, o imigrante turco conseguiu vaga por aqui, mas perdeu o emprego de atendente de uma companhia aérea em Guarulhos no ano passado. Desde janeiro, atua vendendo brigadeirosna principal avenida da capital. “Tiro em média 100 reais por dia. Dá para ajudar a pagar as contas.”
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Em meu primeiro dia como camelô, tive como “vizinho de ponto” o nigeriano Esosa Iyere, na cidade desde 2010. Ao me ver em sua vaga habitual (no número 21 da avenida, quase na esquina com a Rua Frei Caneca), ele fechou a cara e abriu sua mesinha com roupas africanas quase no meu colo. Propus que se um fiscal encrencasse com o “overbooking”, eu, novata, sairia na hora dali. Iyere e os outros do pedaço aceitaram o combinado. Éramos oito em um local com cinco demarcações. Depois do pequeno stress inicial, os veteranos relaxaram e até me ensinaram algumas regras da “classe”. Quando um ambulante precisa ir ao banheiro, por exemplo, alguém por lá se encarrega de olhar o “escritório”.
Na hora do almoço, um colega fica com a missão de buscar marmitas para todos (cada uma custa 12reais na Paulista). A quentinha é consumida na calçada, para ninguém perder oportunidade de venda. Durante esse mês, cumpri uma jornada diária de sete horas na avenida. Fora o estranhamento inicial com o discurso “esse lugar tem dono”, foi divertido: camelôs solidários, clientes simpáticos… Até ganhei uma pulseirinha de um artesão. O lado ruim: o barulho, a poluição que impregna a pele e o cabelo e a indisponibilidade de banheiros. O único lugar onde é impossível se instalar é em frente ao Shopping Center 3, o ponto dos hippies. Fui alertada que a disputa de espaço por ali é feia, com direito a socos e “bombas” de latinhas com urina. Depois de um bate-boca, procurei um canto longe da rapaziada que não é tanto paz e amor quanto parece.
Repeti a tática da boa vizinhança em outras esquinas da área, mas nunca precisei deixar o pedaço de repente, muito menos correr de um “rapa”, quando a polícia baixa de surpresa recolhendo todas as mercadorias. Fiscais da prefeitura? Em quatro semanas, não vi nenhum deles por lá. “Fazemos um trabalho constante de vigilância, mas são apenas dezenove agentes, que trabalham com 72 pessoas divididas por equipes e encarregadas de cobrir uma área de 26,20 quilômetros quadrados,referente aos nossos oito bairros”, justifica Gilmar Tadeu, subprefeito da Sé, responsável pela Paulista. A região conta ainda com 491 policiais militares da Operação Delegada, acordo entre os governos estadual e municipal segundo o qual guardas em horários de folga fazem “um bico oficial” na fiscalização de ambulantes. Neste ano, a ação apreendeu mais de 151 500 objetos falsificados na região central.
Infação na avenida
Peças vendidas na Paulista são bem mais caras que as equivalentes da Rua 25 de Março. Confira os produtos e preços na galeria abaixo:
Jamais tirei da minha bolsa o “RG de camelô” da Sutaco. Nas ruas, falsificações do documento podem ser compradas por 50 reais. “Para combater esse problema, vamos disponibilizar à prefeitura nosso banco de dados com os cadastros”, afirma Elisabete Bacelar do Carmo, subsecretária da Sutaco. Além disso, há um projeto para mudar o certificado, que passará a conter um código de barras. “Pretendemos começar a emitir os novos modelos no segundo semestre”, completa Elisabete. Parte da categoria que labuta na Paulista simplesmente despreza ou desconhece esse registro. “Essa imposição é fuleiragem”, define Antônio José da Silva, conhecido como Piauí Ecologia, líder informal dos hippies.
Ele encabeça um tapetão com doze expositores aglomerados em frente ao Center 3. Entre incontáveis goles de long necks consumidas ao longo do dia, ficam observando o vaivém das pessoas e atendendo os clientes. No meio deles, um músico de rua costuma mandar um cover deJimi Hendrix na guitarra. Os acordes podem ser ouvidos dentro das lojas do centro de compras. “Nunca ouvi falar de carteirinha da prefeitura”, conta Matías González, vendedor de bijuterias. Vindo de Montevidéu, fez uma escala na capital antes de seu objetivo final: faturar no Rio de Janeiro com os Jogos Olímpicos.
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Por falar em evento esportivo, há quem tenha saudade da Copa do Mundo de 2014, apesar dos 7 a 1 da semifinal contra a Alemanha. Eunice Lundgardh diz que o mercado era bem melhor na época do campeonato de futebol da Fifa. “Agora só tem ‘Miranda’”, reclama, na gíria usada para aquele cliente em potencial que olha os itens na banquinha, faz mil perguntas, mas depois sai sem comprar nada. Nem todos têm motivo para queixa.
Em frente ao Shopping Cidade São Paulo, Danilo Carvalho Lemos, estudante de odontologia, tira em torno de 3 000 reais por mês com a venda de pulseiras e colares. Trabalhava como analista de suporte, mas percebeu que teria um lucro maior fora do escritório, com seu hobby de praticar artesanato. “Não pretendo parar nem quando começar a atuar como dentista”, jura. Uma banca boa precisa ter muitos itens (no caso de bijuterias, pelo menos 300 unidades). Boa parte incrementada com coisas importadas ou compradas na Rua 25 de Março.
O movimento vem incomodando comerciantes legalizados e moradores da região. “Sempre as mesmas pessoas entopem as calçadas e ninguém faz nada”, diz Raphaela Galletti, presidente do Movimento de Moradores da Avenida Paulista. “Isso aqui virou uma terra de ninguém, e muita gente sofre com prejuízos”, reforça Célia Marcondes, fundadora da Sociedade dos Amigos, Moradores e Empreendedores do Bairro de Cerqueira César (Samorcc). Alguns estabelecimentos relatam prejuízos.Encolheu, por exemplo, a bilheteria do cinema Reserva Cultural, conjunto de salas de cinema que oferece uma programação de filmes premiados. “Perdemos em média 20% da renda habitual, especialmente aos domingos”, diz Jean Thomas Bernardini, diretor do cinema.
O complexo tem um janelão voltado para a calçada. Volta e meia, são avistados de lá aulas de zumba, forró, vendedores de pulseirinhas, apanhadores de sonhos, araras de roupas (sem contar os mendigos de calças abaixadas, quefazem a rua de banheiro e motel). “Os imóveis do entorno correm o risco de desvalorização e muitos pontos comerciais estão ficando vazios”, diz Vilma Peramezza, presidente da Associação Paulista Viva, que representa 400 empresas. Ela relata que a crise, o fechamento da via para os automóveis aos domingos e as constantes manifestações espantam clientes. “Todo mundo tem direito ao trabalho, mas questionamos a falta de fiscalização, a sujeira e o barulho dos cantores”, acrescenta Vilma.
Há também preocupação com a segurança. Em frente a uma farmácia, ambulantes comercializam DVDs piratas. “Não sabemos nada sobre esse pessoal”, despista o gerente do estabelecimento, que preferiu não se identificar. Segundo dados do site Onde Fui Roubado, no qual as vítimas marcam o local do crime, a AvenidaPaulista está em décimo lugar no ranking dos logradouros mais perigosos da cidade, com treze denúncias em 2016. Segundo a assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo, não é possível confirmar os dados da página, pois a polícia não separa ocorrências por vias.
Outra característica forte do movimento é a sua babilônia de sotaques, com destaque para os sul-americanos. Contei em um dia cerca de vinte equatorianos nas redondezas, oferecendo echarpes e luvas trazidas do seu país natal. Os africanos também comparecem. Certa vez, um nigeriano me contou que contrabandeiachapéus de seu país. “Damos um jeitinho para os policiais no aeroporto liberarem as mercadorias, e os fiscais aqui nunca reparam”, gabou-se, aproveitando para me aconselhar. “Passe lá no centro, porque, só com essas trinta pulseirinhas aí na sua banca, você não vai vender nada.” Ele estava certo. Segui as regras da prefeitura, ofereci apenas produção própria e só tirei 90 reais em toda a minha temporada nas ruas. Um fracasso perto dos colegas campeões de faturamento no camelódromo que cresce a cada dia no nosso cartão-postal.
Colaborou Sérgio Quintella
Passaporte da rua
Como a repórter virou camelô registrada
O registro oficial para trabalhar nas ruas é a carteira da Subsecretaria do Trabalho Artesanal nas Comunidades (Sutaco). Tirei o meu em 7 de abril, depois de dois meses de espera para agendar a prova. No dia do teste, basta levar documentos, uma foto 3×4 e fazer uma peça diante de um funcionário. A certidão sai na hora.“Por causa da crise e da nova lei municipal, a procura aumentou 40%”, diz Elisabete Bacelar do Carmo, subsecretária do órgão. Dos quinze candidatos por dia, em média, um ou dois não passam no teste. “Só reprovamos quem não mostra uma técnica artesanal ou aqueles sem a mínima habilidade”, declara.
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Glossário do ambulante
As gírias e expressões mais curiosas usadas pela turma
- Abrir ou fechar o escritório: montar ou desmontar a banquinha
- Corre: tem dois significados. Refere-se ao ambulante com produtos ilegais que foge da polícia. E “olha o corre” virou sinônimo de “olha o rapa”
- Industrianato: produtos industrializados comprados na Rua 25 de Março, mas vendidos como artesanato
- Maluco da BR: os hippies vindos das mais diferentes partes do Brasil, vendedores de artesanato, sem endereço fixo, que viajam pelas estradas (as BRs) do país
- Miranda: o cliente que mira e anda, ou seja, “namora” diversos itens na banquinha, experimenta peças e faz uma série de perguntas ao vendedor, mas depois vai embora sem comprar nada
- Paraquedista: aquele que expõe mercadorias ilegais em uma lona no chão e, ao ver um fiscal, recolhe tudo numa “trouxona” nas costas, como um paraquedas
- Pedra do artesão: pontos tradicionais de trabalho nas ruas de artesãos hippies (como em frente ao Center 3)
- Rato de rua: o comerciante que se acha o dono do ponto e até sai no tapa por ele se algum concorrente ameaçar seu domínio sobre o pedaço