Exclusivo: conheça as 22 novas espécies na fauna da cidade
Estudo da prefeitura mapeia os animais que vivem no município e faz descobertas curiosas, como aves de rapina, marsupiais e insetos
“É ele ali? Sim! Esse barulho é do andorinhão-do-temporal, uma ave que vem lá da Amazônia e se reproduz aqui”, aponta para o céu do Refúgio de Vida Silvestre Anhanguera a bióloga Letícia Zimback, 34.
O pássaro migratório figura entre as 1 354 espécies catalogadas na capital paulista pelo Inventário da Fauna, realizado pelo poder municipal desde 1993 — e anual desde 2021 — e que tem como objetivo mapear os animais que habitam a cidade tanto nas áreas de conservação quanto nos parques urbanos.
A Vejinha obteve com exclusividade a versão de 2023 do estudo, que contabilizou 22 novas espécies para os registros paulistanos (confira seis exemplos nos quadros ao longo da matéria). A maior parte são aves, insetos, mamíferos e peixes esperados em regiões de Mata Atlântica, como a cidade, mas que ainda não tinham sido contabilizados pela prefeitura.
O trabalho leva em conta espécimes vistos em 168 espaços verdes e é realizado pela Divisão de Fauna da Secretaria Municipal do Verde. Neste ano, o Refúgio de Vida Silvestre Anhanguera, uma área de 7,4 milhões de metros quadrados (quase cinco vezes o tamanho do Parque Ibirapuera) em Perus, Zona Norte, foi um dos principais focos dos trabalhos em campo da equipe.
Criado oficialmente como área de conservação em 2020 e margeado pelas rodovias Anhanguera e Bandeirantes, o local surpreende por concentrar exemplares de bichinhos cada vez mais raros, como onças-pardas, jaguatiricas e lontras.
O endereço passa pela formulação de um plano de manejo, o documento que faz um diagnóstico das características da área de conservação e define um plano de ação para melhorar as condições do espaço.
Em janeiro a equipe da prefeitura caminhava pelo entorno do Rio Juqueri, que corta o Refúgio, quando ouviu um canto agudo e melancólico. Rapidamente, abriram o celular e reproduziram em um aplicativo o canto do gavião-preto, uma ave de rapina. O animal ainda não tinha sido registrado na cidade.
“Tocamos a vocalização da espécie para confirmar o que ouvimos e para atrair o animal, porque algumas espécies vêm defender o território ou aparecem, curiosas”, lembra Letícia, que é a coordenadora do inventário. Logo depois, a ave planou a poucos metros dos biólogos e entrou na lista de novos paulistanos.
Chegando a 63 centímetros de comprimento e a 1,3 quilo, o gavião-preto foi visto no entorno do Rio Juqueri, na Zona Norte, durante pesquisa de campo. O animal foi atraído para perto da equipe após os biólogos reproduzirem o canto da ave no celular. “Eles gostam de ficar próximos de cursos de água, caçam répteis e anfíbios e ocorrem em todo o Brasil”, explica Fernanda Guida, 50, responsável pelo setor de aves do Zoológico de São Paulo, onde o espécime foi fotografado para a reportagem.
Os estudos no Refúgio são conduzidos por biólogos da prefeitura e também por pesquisadores que foram contratados pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas da USP, o IPT. A prefeitura fechou um contrato com o órgão estadual para a elaboração do plano de manejo do parque, ao custo de 1,85 milhão de reais.
Em outra incursão pela mata do Anhanguera, em setembro, foi a vez de mais uma descoberta. Os biólogos armam redes de neblina a 3 metros de altura em trilhas da unidade de conservação para monitorar os pássaros. “Pegamos o tico-tico-do-bico-amarelo, que é mais relacionado a áreas do interior e parece estar expandindo sua ocorrência na cidade”, conta Letícia.
As aves também são detectadas pelo canto: foram cerca de cinquenta horas de som da floresta captadas com gravadores espalhados pela mata e analisadas pelos pesquisadores.
Em pontos estratégicos, a equipe descia dos veículos para verificar o interior de pequenos retângulos de metal, que serviam de armadilhas para os mamíferos, ou fuçar com longos ganchos o interior de baldes de plástico, enterrados e rodeados de redes de proteção, para capturar os animais que se esgueiram pelo chão.
O dia começou com o encontro com um simpático rato-do-mato, já registrado em outras edições do Inventário. “Mamíferos como as onças comem esses ratos, que estão por aqui em abundância”, explica o biólogo Paul Colas, 41.
A equipe encontra também dois exemplares da pequena rãzinha-marmoreada, outra espécie comum e de um verde camuflável entre as folhas que caem do alto das árvores.
O simpático passarinho abocanha insetos e sementes e é caracterizado pelo bico colorido e a faixa negra no peitoral. O espécime paulistano foi capturado na mata com o auxílio de redes, identificado e liberado. Chega a 33 gramas e mede 16 centímetros de comprimento.
O endereço que contabiliza o maior número de espécies no município é a área do Parque Estadual da Cantareira e do Horto Florestal, com 504 registros. Na sequência aparece o Refúgio Anhanguera, com 485, e em terceiro o Parque Ibirapuera, com 476 espécies. Isso não significa que são as áreas mais diversas da cidade, mas, sim, as que tiveram maior esforço amostral. “São lugares que contam com monitoramento de décadas”, conta a bióloga Anelisa Magalhães, 56.
A equipe usa tanto dados próprios para a formulação do Inventário quanto informações de outras fontes, como artigos científicos e planos de manejo dos parques estaduais. Neste ano, por exemplo, o grupo revisou os estudos do poder estadual feitos nos parques estaduais do Jaraguá e da Cantareira a partir de 2009 e percebeu que quatro espécies, um lagarto, duas cobras e um pássaro, ainda não estavam no Inventário, posteriormente incluídas entre as 22 espécies.
Os pesquisadores contam também com um pouco de sorte. Em outubro, por exemplo, uma catita, marsupial de cerca de 15 centímetros, foi solta no Parque do Jaraguá após ser levada para o posto de atendimento de animais silvestres da prefeitura no Refúgio Anhanguera (são dois, um na Zona Norte e outro no Parque Ibirapuera). O animal foi atacado por um cão, mas se recuperou e foi reintroduzido na natureza. Até então, não se sabia da ocorrência do pequeno bichinho.
Outra fonte de dados são os encontros mensais do programa Vem Passarinhar, em que os biólogos acompanham paulistanos interessados na observação de pássaros por parques da cidade. “Em agosto, estávamos na Zona Norte, no Parque Linear Córrego do Bispo, com um grupo de 28 pessoas, quando avistamos o gavião-pombo-grande”, lembra Letícia. Rolou até foto. Mais uma ave inédita para a conta.
Um marsupial, a catita foi resgatada após ser atacada por um cachorro no bairro do Jaraguá. Pesa até 74 gramas e se alimenta de insetos. Após reabilitação, o animalzinho foi devolvido para a natureza em outubro deste ano.
Nem sempre os animais são encontrados vivos. Em maio deste ano, o gestor do Parque Natural Varginha, na Zona Sul, Kleber Rodrigues, 40, recebeu dos vigias da unidade de conservação imagens de um bichinho curioso encontrado morto em uma via. “Ele estava em uma estrada de acesso da Represa Billings”, lembra Rodrigues. O espécime foi enviado para a Divisão de Fauna e constatou-se outra surpresa para a lista: a simpática cuíca, um pequeno marsupial.
Os funcionários mantém também grupos de WhatsApp com entusiastas, alguns deles frequentadores dos encontros do Vem Passarinhar. É o caso de Renato Sobral, 42, que trabalha na biblioteca da Faculdade de Medicina da USP e nas horas vagas fotografa borboletas nas áreas verdes da Zona Leste. “Tenho registro de mais de 200 borboletas diferentes do Parque Municipal Fazenda do Carmo”, conta Sobral. Veio dele a descoberta da borboleta skipper, até então inédita no Inventário.
A bióloga Anelisa, que participou da primeira edição da pesquisa, em 1993, explica que o Inventário teve início para guiar a soltura dos animais silvestres resgatados na cidade. Hoje é utilizado também para pesquisas acadêmicas e guia a formulação de políticas públicas ambientais. “A fauna da cidade é dinâmica. O bioma predominante é Mata Atlântica, mas estamos vendo animais do Cerrado cada vez mais presentes, um reflexo das mudanças no clima”, explica ela.
Alguém disse néctar? A skipper é uma borboleta de tamanho médio, de 5 centímetros de envergadura, e gosta de pousar no chão com as asas fechadas. A foto foi feita por Renato Sobral, um entusiasta da fauna paulistana, na Zona Leste.
O marsupial se alimenta de insetos e chega a pesar 132 gramas. O exemplar paulistano foi encontrado no Parque Natural Varginha, morto. “Mas nos estudos para o plano de manejo do parque, que ainda não foi concluído, encontramos um animal que, ao que tudo indica, é da mesma espécie e estava vivo”, conta Kleber Rodrigues, gestor do parque.
No meio urbano é mais fácil os paulistanos se depararem com morcegos, gambás e também saguis, que habitam áreas verdes. “Conforme você se afasta do Centro, começa a ver muita vida silvestre”, explica o biólogo Tiago Ostorero, 43.
Os grandes mamíferos, como a onça-parda, ficam nas pontas preservadas do município. Para monitorá-los, a equipe usou no último ano vinte câmeras que são acionadas por movimento, no caso do trabalho no Anhanguera. “Mas até agora sobraram dezesseis”, conta o veterinário da prefeitura Marcello Schiavo Nardi, 42. Os equipamentos são furtados por invasores.
“Nas câmeras já vimos homens com arma de fogo de longo calibre”, narra Nardi. Quem dera os encontros fossem apenas a distância. “Aqui temos problemas com caçadores e pescadores”, diz o gestor do Refúgio Anhanguera, Valter José de Lima, 54.
Em junho, quando aconteceu a primeira rodada de estudos no local, por vezes a equipe se deparava com uma sequência de árvores derrubadas nas estradas. “Eles (pescadores ou caçadores) fazem isso para escutar quando estamos chegando perto”, explica Letícia. “Rolou mais de uma vez”, conta Ostorero.
“Tínhamos dificuldade para monitorar toda a área, que é muito extensa. Mas agora estamos com monitoramento mais constante, o que diminuiu bastante esse tipo de ocorrência”, afirma José de Lima. De abril para cá, o número de vigilantes e brigadistas praticamente dobrou, chegando a 72 por dia, que realizam rondas de motos e caminhonetes na área de preservação.
A foto abaixo foi feita no Parque Linear Córrego do Bispo, onde a ave foi avistada em agosto. A ave se alimenta de pássaros, como papagaios e sabiás, e pequenos mamíferos e mede até 53 centímetros de comprimento.
A Secretaria do Verde e Meio Ambiente afirma que em 2023 o valor destinado para a manutenção das dez unidades de conservação municipais aumentou, saindo de 17,5 milhões no ano passado para 45,9 milhões de reais neste ano.
No Anhanguera, além dos vigilantes, trabalham 88 guardas-civis ambientais. O número de infrações e crimes ambientais nas unidades de conservação da prefeitura, no entanto, está em alta: foram 1 195 em 2021, 1 363 em 2022 e 2 383 até novembro deste ano. “Geralmente nos deparamos com ocorrências de desmatamento, caça, veículos produtos de furto que são desmanchados na mata e também tráfico de drogas”, explica o inspetor da Guarda Civil Ambiental Vanderlei dos Santos, 52, que atua nas unidades de conservação da Zona Leste.
Para 2024, a expectativa é que sejam contabilizadas mais espécies inéditas para a cidade. Há grupos de animais ainda pouco explorados, como os invertebrados e os peixes.
Entre os 22 novos animais adicionados neste ano, seis são peixes encontrados no Anhanguera. “A grosso modo, são espécies comuns para o estado de São Paulo, mas que conseguem se reproduzir em ambientes poluídos”, explica o biólogo André Teixeira da Silva, 42, que analisou o grupo nos rios e lagos do Refúgio, que, apesar de estarem dentro de uma reserva, são afetadas pelo descarte irregular de esgoto do entorno.
“A cidade possui alguns dos melhores especialistas, mas as energias geralmente são focadas em lugares como a Serra do Mar ao invés de entendermos melhor o município, para que se teçam estratégias que melhorem a vida dos animais que aqui vivem”, pontua Silva.
No ano que vem, a expectativa é que os planos de manejo de quatro unidades de conservação da Zona Sul sejam concluídos, com investimento de 1,2 milhão de reais, com mais informações sobre os animais daquela região. “Também vamos começar os estudos do Parque Natural Cabeceiras do Aricanduva, criado neste ano na Zona Leste. Aumentando a amostragem, a tendência é também subir o número de novas espécies”, finaliza Anita Correia, 47, diretora da divisão de gestão das unidades de conservação municipais. ■
Depois da publicação da reportagem, os pesquisadores reviram o número de novas espécies de 25 para 22 por conta de um erro constatado entre os tipos de peixes que faziam parte da lista.
Publicado em VEJA São Paulo de 22 de dezembro de 2023, edição nº 2873