Esta é uma história verdadeira. Não dou os nomes porque algumas das pessoas ainda vivem.
O homem que a conta, alegre, gordo, de uns 70 anos, tem um olhar malicioso ajudado pelo sorriso, ou é um riso malicioso reforçado pelo olhar. Não perde as temporadas de ópera no Teatro Municipal, sabe de cor longos trechos das árias. Vem a minha casa em algumas reuniões.
Conversávamos sobre as tramas das telenovelas e ele as defendia, sustentando que as óperas eram ainda mais melodramáticas, e eram obras de gênios. Contra-argumentam: “Mas foram criadas na época romântica, não hoje”. E ele rebate: “A gente pensa que as novelas são muito fantasiosas, mas há casos da vida real muito mais novelescos”. Para comprovar, conta a história da sua tia e sua mãe.
Eram duas irmãs ricas. A mais velha, bonita; a mais nova, linda. Moravam desde pequenas na Avenida Angélica, que era um dos endereços mais elegantes de São Paulo. A família tinha carro, conduzido por motorista de quepe e uniforme. Os paulistanos diziam chauffeur, com pronúncia francesa. Por volta de 1920, 1930, não havia muitos na cidade.
Elas estudavam música: piano (mania da época, moda, quase praga, que Mário de Andrade chamava de pianolatria). Tinham piano em casa; um professor do Conservatório Dramático e Musical vinha três vezes por semana tomar-lhes as lições.
Os nomes das moças foram tirados de personagens de óperas, seus sobrenomes eram de boa família napolitana. Os pais não chegaram pobres da Itália, vieram para fazer negócios, primeiro no interior, e depois de bem estabelecidos se mudaram para a capital. As filhas foram a primeira geração de brasileiros da família.
A temporada lírica do Municipal era o grande acontecimento artístico da cidade, todos os anos vinham companhias italianas trazendo cantores, cenários, figurinos, cinco óperas diferentes, e até maestro e solistas. Os aficionados pobres ficavam no anfiteatro; os remediados, no balcão; os ricos, nos camarotes e na platéia.
A família comprava camarote para todas as estréias, quatro pessoas. Quando as mocinhas chegaram à idade de casar-se, eram elas que ficavam nas cadeiras da frente. À mostra, na vitrine, em sua melhor toalete.
Ah, o amor.
A filha mais velha apaixonou-se por um vendedor de sapataria do centro. Fosse o jeito delicado dele de tocar no seu pezinho ao provar um sapato, fossem os olhos tímidos escapando dos dela, mas, voltando, fossem as óperas: apaixonaram-se. Proibidos, trancada, vigiada; ele, trabalhador, correto, mas pobre. Namoro? Nem pensar. Ah, o amor. Este acabou vencendo, com conseqüências. Deserdada, expulsa da família, casou-se com o vendedor de sapatos, foram morar na Mooca, tiveram dois filhos e viveram felizes para sempre.
A mais nova, a linda, teve um casamento de pompa. O pai já não andava bem de saúde, fez uma festança como se fosse a última. O noivo era brasileiro de segunda geração, neto de italianos que chegaram pobres e endinheiraram-se. Não trabalhava, gostava de clubes, cassinos, cavalos. Ela, a mais nova, casou-se apaixonada.
O fim da história já os apanha no começo dos anos 1940. Tinham também dois filhos. Em dez anos, o marido, jogador compulsivo, fora perdendo o dinheiro, a herança, os bens, as propriedades. Uma noite, numa cartada de pôquer, tudo ou nada, apostou a própria bela mulher, e perdeu.
Aqui, há perguntas sem respostas. Teria ele pensado que era dívida incobrável – a esposa uma espécie de caução? Contava com a recusa dela, já que não era uma coisa? E o outro apostador, por que aceitara a parada? Seria apaixonado por ela? Desejava-a? Conhecia-a? Queria humilhar o riquinho falido?
No dia seguinte, o ganhador mandou um carro apanhar na casa hipotecada da Avenida Angélica a dívida de jogo. Imagine-se a cena final. Ela concordou, foi. Os filhos não a quiseram acompanhar. Deixou-os com a irmã, mulher do rejeitado vendedor de sapatos, agora dono de uma pequena sapataria de bairro.