A volta do anjo pornográfico
No centenário de Nelson Rodrigues, São Paulo vira palco de dezessete montagens do nosso maior dramaturgo
Sempre provocador, o dramaturgo recifense de nascimento e carioca de alma Nelson Rodrigues (1912-1980) sentenciou: “A pior forma de solidão é a companhia de um paulista”. Ironicamente, nossa cidade é justamente o local que reverencia incansavelmente o maior autor do teatro brasileiro neste ano de comemoração de seu centenário. Das cerca de oitenta peças em cartaz hoje na capital, cinco são de sua autoria. Na próxima semana, mais duas engrossam a lista de atrações, e, até o fim do ano, já estão confirmadas pelo menos outras dez produções baseadas em sua obra. Se nunca se montou tanto Nelson Rodrigues por aqui, o Rio de Janeiro, cenário de suas histórias, ainda não deu uma arrancada significativa para as homenagens.
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Entre 1941 e 1978, o “Anjo Pornográfico” — título de sua biografia, escrita por Ruy Castro — fez dezessete peças. Suas tramas giram em torno de conflitos familiares, relações muitas vezes incestuosas e obsessões que envolvem respeitáveis chefes de família ou senhoras de sólida formação moral. Temas que escandalizam ainda hoje alguns espectadores. O drama “A Serpente”, por exemplo, traz uma mulher que oferece o marido a sua irmã, casada com um sujeito impotente. Atriz e diretora de uma atual montagem desse texto, Eloisa Vitz observa reações de incômodo na plateia do Teatro Ruth Escobar, na Bela Vista. “Percebo as pessoas assustadas, se cutucando. Outro dia, uma mulher ameaçou uma discussão com o marido alegando que ele aceitaria passar a noite com a cunhada, se tivesse oportunidade”, conta Eloisa, responsável por já ter levado à cena outros três textos do autor.
Desde outubro, o Teatro de Arena Eugênio Kusnet, na Consolação, que vivia às moscas, voltou a ter filas na bilheteria. A estreia da tragédia “O Beijo no Asfalto”, liderada pelo ator Renato Borghi, abriu a programação da mostra “Quem Ainda Tem Medo de Nelson Rodrigues?”. “É hora de esse autor ter um reconhecimento no Brasil semelhante ao prestígio que o inglês William Shakespeare ou o alemão Bertolt Brecht desfrutam no país deles”, afirma a atriz Gabriela Fontana, umas das idealizadoras do projeto, alavancado com 300.000 reais vindos da Funarte. “A família de Nelson tem facilitado bastante isso, permitindo que todos possam montá-lo quando quiserem e sem necessidade de exclusividade”, diz o diretor Marco Antônio Braz, que planeja criar uma companhia para encenar permanentemente o escritor.
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Além de “O Beijo no Asfalto”, Braz está no Teatro de Arena com a tragicomédia “As Noivas de Nelson”, adaptada dos contos de “A Vida como Ela É”, e o monólogo “Valsa Nº 6”, interpretado por Lívia Ziotti — que tem outra versão em cartaz na Casa das Rosas, em que a atriz Ligia Paula Machado é dirigida por Dan Rosseto. Para junho, desta vez no Teatro do Sesi, Braz promete duas das chamadas “tragédias cariocas”, “A Falecida” e “Boca de Ouro”, protagonizadas respectivamente por Maria Luisa Mendonça e Marco Ricca. “Pela primeira vez temos uma geração que pode conhecer Nelson sem os estigmas ou os preconceitos gerados quando ele ainda vivia”, completa Braz.
Foi com essa ideia que o ator e diretor Nelson Baskerville montou o drama “17 X Nelson — Parte 2 — Se Não É Eterno Não É Amor”, que reúne uma cena de cada peça do dramaturgo em pouco mais de duas horas. “Trata-se de um grande trailer para as pessoas perceberem quanto sua dramaturgia é universal e esquecerem a imagem deturpada das adaptações cinematográficas dos anos 70 e 80 que centraram o foco apenas no sexo”, afirma Baskerville, que em 11 de fevereiro estreia no mesmo Arena a tragédia “Os Sete Gatinhos” e encenará “Vestido de Noiva” até o fim do ano. “Nelson Rodrigues sempre escreveu sobre o que as pessoas pensam e por hipocrisia não têm coragem de falar.”
Levar aos palcos histórias tão conhecidas do público não intimida os encenadores. Em julho, o diretor João Fonseca montará no Teatro Raul Cortez a farsa “Doroteia”, com a estrela global Alinne Moraes no papel principal. “É mais ou menos como Shakespeare, em que todo mundo sabe do que trata a história”, compara Fonseca. “O público quer ver então como o ator vai fazer o personagem ou como será a versão. Por isso, não penso em uma cobrança.”
Especialista em comédias, o diretor Alexandre Reinecke já definiu sua leitura para o drama “A Mulher sem Pecado”. O marido que se finge de paralítico para testar a fidelidade da mulher estaria em uma cadeira elétrica no cenário todo em preto e branco. O único detalhe colorido seria o vestido vermelho da suspeita de adultério. Juca de Oliveira é o nome cogitado para o elenco. “As peças de Nelson acabam resultando muito mais engraçadas, hoje em dia, por causa desses elementos trágicos. Fizemos uma leitura com o próprio Juca, e a plateia rolava de rir”, conta Reinecke, que também em agosto levará à cena a comédia “Viúva, Porém Honesta”.
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Outra versão de “Boca de Ouro”, desta vez com o ator Milhem Cortaz, começará a ser ensaiada em junho para estrear em outubro. O diretor Ivan Feijó não ficou receoso ao saber que Marco Antônio Braz e Marco Ricca estrearão antes. Pelo contrário: “Devemos ter um Nelson a cada esquina. Assim, o público entenderá a variedade e as muitas leituras de seus textos”.
O biógrafo Ruy Castro afirma que Nelson Rodrigues mergulhou no ser humano como nenhum brasileiro até então. “Plínio Marcos localizou suas taras, perversões e mazelas nos bordéis, sarjetas, prisões e ambientes em que essas coisas acontecem. Nelson fez isso nas casas de família, e seus tarados são médicos, juízes, meninas virgens, ‘homens de bem’. Tematicamente, ele ainda é um choque”, diz Castro. E, para ele, essa temática significa uma festa para qualquer diretor. “O engraçado é a plateia continuar achando que ouviu 300 palavrões em cena, quando na verdade as peças não contêm nenhum”, destaca. “Nelson é que punha o palavrão na cabeça do espectador e o fazia dizê-lo mentalmente.”
UMA VISITA A SÃO PAULO
Nelson Rodrigues pouco saía de sua casa no Rio de Janeiro. Raras vezes veio a São Paulo ou foi a qualquer outro lugar. Em uma visita à cidade, em dezembro de 1973, a convite do diretor Antunes Filho e da atriz Miriam Mehler, ele assistiu a um ensaio geral, no Teatro Paiol, da peça “Bonitinha, Mas Ordinária”, que estrearia no mês seguinte. “Naquela época, não se montava muito Nelson por aqui”, relembra Miriam, que o convidou para um jantar no Gigetto, restaurante frequentado por gente do teatro. O autor falou pouco, mas se mostrou satisfeito com o que havia visto. Na véspera do lançamento, Miriam foi avisada pelos censores de que precisava ir a Brasília para negociar a liberação da peça. “Pedi ajuda ao Nelson e ele disse que já tinha problemas demais com os militares”, conta ela, que estreou com trinta cortes no texto.
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Logo após o início da temporada, o escritor assinou uma crítica elogiosa à montagem no “Jornal da Tarde”. O contato entre a atriz e o dramaturgo tornou-se constante. Toda madrugada, por volta das 3 horas, durante um ano, seu telefone tocava e uma voz grave vinha do outro lado da linha: “Miriam, é o Nelson. Quantos pagantes foram hoje?”. A atriz levava o borderô para casa. “É impressionante perceber que um homem tão genial precisava se preocupar com os poucos tostões que receberia a cada noite. E isso só acontecia porque, de fato, ele necessitava do dinheiro”, diz ela.
CELEBRAÇÃO EM CENA
O que está em cartaz
■ “O Beijo no Asfalto“: tragédia dirigida por Marco Antônio Braz no Teatro de Arena Eugênio Kusnet.
■ “17 X Nelson“: adaptação de Nelson Baskerville para cenas das dezessete peças do autor no Teatro de Arena Eugênio Kusnet.
■ “A Serpente“: drama dirigido por Eloisa Vitz no Teatro Ruth Escobar.
■ “Valsa Nº 6”: monólogo também dirigido por Braz e protagonizado por Lívia Ziotti no Teatro de Arena Eugênio Kusnet.
■ “Valsa Nº 6“: nesta versão, a atriz Ligia Paula Machado é dirigida por Dan Rosseto na Casa das Rosas.
O que vem por aí
■ “As Noivas de Nelson”: a adaptação de Marco Antônio Braz para contos de “A Vida como Ela É” entra em 6 de fevereiro no Teatro de Arena Eugênio Kusnet.
■ “Os Sete Gatinhos”: versão de Nelson Baskerville estreia no Teatro de Arena Eugênio Kusnet em 11 de fevereiro.
■ “Doroteia”: farsa dirigida por João Fonseca, com Alinne Moraes e Gilberto Gawronski no elenco, pode ser conferida a partir de julho no Teatro Raul Cortez.
■ “Senhora dos Afogados”: sucesso no Rio, a montagem dirigida por Ana Kfouri deve ocupar um casarão da Avenida Paulista em junho.
■ “A Falecida”: Maria Luisa Mendonça lidera o elenco da tragédia que chega em junho ao Teatro do Sesi.
■ “Boca de Ouro”: sob a direção de Marco Antônio Braz, Marco Ricca protagoniza montagem no Teatro do Sesi em junho.
■ “Boca de Ouro”: Milhem Cortaz também estrela o texto, desta vez dirigido por Ivan Feijó, em outubro.
■ “A Mulher sem Pecado”: o diretor Alexandre Reinecke estreia adaptação da primeira peça de Nelson Rodrigues em agosto no Tuca. Simultaneamente, Reinecke lança versão para a comédia “Viúva, Porém Honesta”.
■ “O Casamento”: Johana Albuquerque, diretora da Bendita Trupe, adapta o romance “O Casamento” em setembro, tendo Renato Borghi à frente do elenco.
■ “Vestido de Noiva”: Baskerville estreia montagem em outubro na Funarte.
■ “A Falecida”: Verônica Fabrini protagonizou coprodução chilena dirigida por Claudia Echenique, já apresentada em Santiago e que chega a São Paulo no segundo semestre.