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A vida na penitenciária do Tremembé

Ali estão 296 presos, entre eles Roger Abdelmassih, Alexandre Nardoni, Lindemberg Fernandes e os irmãos Cravinhos

Por Caio Barretto Briso
Atualizado em 5 dez 2016, 10h20 - Publicado em 15 out 2009, 15h09

Sobre o portão azul da entrada principal, uma frase estampada na parede soa quase como uma sentença: ‘Este presídio só recebe o homem. O delito e seu passado ficam nesta portaria’. O advogado C., de 29 anos, que acabara de chegar naquela quinta-feira (24 de setembro), acusado de estuprar uma menina de 13 em Araçatuba, no interior do estado, desvia o olhar da escrita e, aflito, dispara a perguntar: ‘ Como é aqui? Serei bem tratado? Há cela especial para quem tem nível superior? A comida é boa? ‘ Acostumado com a cena – só naquele dia sete novos presos passaram ali -, o agente penitenciário responde: “Garoto, você está no paraíso”. Comparada a boa parte das 74 penitenciárias do estado de São Paulo, a P-II, como Tremembé é conhecida, de fato proporciona vida diferenciada a seus presos. As celas de 15 metros quadrados do segundo pavilhão, por exemplo, com capacidade para seis pessoas, não são ocupadas por mais que cinco. A comida, feita por 24 presos e que alimenta tanto os confinados como os diretores do presídio, é boa. Aulas de música e inglês, campeonatos de xadrez e concursos de poesia são algumas das atividades regulares. A unidade tem ainda duas oficinas de usinagem e montagem de torneiras, templo ecumênico e um campo de futebol.

Construída em 1948, Tremembé recebe desde 2002 os chamados presos especiais. A maioria dos 296 detentos que cumprem pena em regime fechado possui ensino médio ou nível superior. São presos que costumam sofrer rejeição junto à população carcerária comum por terem cometido crimes como pedofilia e estupro. Também abriga pessoas que correriam risco de vida em outra penitenciária, como ex-policiais e ex-agentes penitenciários. E ainda presos envolvidos em casos de grande repercussão. Atualmente, ocupam suas celas, que variam de 8 a 15 metros quadrados, o médico Roger Abdelmassih, denunciado por 56 acusações de estupro, Alexandre Nardoni, acusado de matar a filha Isabella, os irmãos Cravinhos, condenados pela morte dos pais de Suzane von Richthofen, o segurança Lindemberg Alves, acusado de matar a ex-namorada Eloá Pimentel, de 15 anos, e o segurança João Alexandre Rodrigues, que confessou ter esquartejado e queimado seus dois filhos (veja quadros ao longo da reportagem). “Nenhum dos famosos dá trabalho. Todos têm ótimo comportamento”, diz o diretor de segurança P. (a pedido da direção do presídio, presos e funcionários serão identificados somente pela inicial de seus nomes).

Em Tremembé o dia começa cedo. Às 5h45 é feita a primeira contagem nos dois pavilhões. As portas das celas são abertas e os agentes penitenciários contam preso por preso, ritual que se repete outras duas vezes, às 11h e às 17h15. Na cozinha, 280 quilos de arroz e 140 quilos de carne são colocados no fogo logo às 7h30. Todas as refeições são servidas na cela. Na quarta-feira (23), o cardápio do almoço era arroz, feijão, bife à rolê, rúcula e tomate. No dia seguinte: arroz, feijão, picadinho de carne com bacon, abóbora e berinjela com queijo. De sobremesa, banana e laranja. Na lavanderia, duas equipes de oito presos se revezam na tarefa de lavar 400 quilos de roupas por dia. “Preso é vaidoso e gosta de andar cheiroso, de roupa lavada e banho tomado”, diz J., há poucos meses em Tremembé, acusado de tráfico de drogas.

De manhã e à tarde, o corredor de acesso aos pavilhões fica movimentado. Ali acontecem as aulas de informática, inglês, ensinos fundamental e médio. Na igreja ecumênica são realizadas as missas católicas e os cultos evangélicos, concorridíssimos. Em frente à igreja, fica a sala de música. I., professor do ensino médio, está sentado no fundo da sala, sozinho, à espera de seus alunos. Lê um livro do crítico russo Mikhail Bakhtin. Mestre em linguística, o doutorando desenvolve sua tese de mestrado na prisão. Ele aproveita o tempo para ler, escrever e estudar. Diz que já escreveu, nos cinco meses em que está em Tremembé, duas peças de teatro. Fiódor Dostoiévski é seu escritor predileto. “Em Crime e Castigo fica claro que a prisão mais severa é a nossa própria consciência. As paredes não prendem. Eu estou preso, mas não me sinto assim”. Ex-agente penitenciário acusado de corrupção, ele diz ter sido torturado para assinar uma confissão inverídica. Divide a cela 105 com Alexandre Nardoni. “A pior coisa de estar preso é a indefinição de não saber quando seremos julgados.”

As visitas acontecem aos finais de semana. Oitenta presos recebem seus parentes aos sábados e o mesmo número aos domingos. Mais da metade das visitas são íntimas, quando eles compartilham com suas mulheres, companheiras ou namoradas um dos 25 quartos especiais com colchão sobre uma cama de concreto, pia, vaso sanitário e chuveiro de água fria. Se a saudade aperta, eles escrevem cartas. Cerca de 2 000 saem do presídio a cada mês. Chega um pouco menos, 1 500. Outro número que impressiona é o de empréstimos de livros na biblioteca. Dos 6 000 títulos, mais de 700 são retirados a cada mês. Os romances policiais de Agatha Christie fazem sucesso. Eça de Queirós e Sidney Sheldon também. C., o número 1 no ranking de xadrez da penitenciária (são dezenove vitórias em vinte partidas), já devorou todos os livros da biblioteca sobre o jogo. Ele diz ter se formado em literatura inglesa na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos. É acusado de estupro. “Xadrez é uma metáfora da vida. Ganha quem planejar melhor.”

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Cerca de 23% dos presos que estão ali cumprem pena por homicídio. É o caso do paraibano J. Ele diz que já perdeu a conta de quantas pessoas assassinou. “Na última vez que contei, eram 21”, afirmou. O que sente após matar? “Na primeira vez é difícil. Depois, é igual matar galinha.” Sua primeira vítima foi um homem que assaltou sua casa. Se pudesse voltar no tempo, J. diz que teria feito diferente. Não por arrependimento, mas porque ficar preso, ainda que seja em Tremembé, é muito ruim.

Os presos mais ‘famosos’ de Tremembé

A vida de Roger Abdelmassih,Alexandre Nardoni, Cristian e Daniel Cravinhos, Lindemberg Alves Fernandes e João Rodrigues no presídio

Roger Abdelmassih, 65 anos

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CELA: 101/PAVILHÃO 2

Por que está preso: é acusado de 56 estupros contra 39 mulheres

Mais magro e sem bigode, o médico Roger Abdelmassih sai de sua cela, a 101, e caminha para o parlatório, onde os presos conversam com seus advogados – ele recebe quase que diariamente a visita de um. Veste a mesma camisa branca e calça marrom-clara de todos. As barras da calça estão dobradas até o início da canela. Como não trabalha em nenhuma das oficinas do presídio, passa o dia escrevendo ou lendo livros de auto-ajuda. Na hora da limpeza da cela de 15 metros quadrados, colabora. Ele divide o espaço, que tem três beliches, uma janela, um vaso sanitário, uma pia e um chuveiro com um ex-delegado, um ex-agente da Polícia Federal, um ex-investigador da Polícia Civil e um preso por tráfico de drogas. Desde que foi preso, em 17 de agosto, ele recebe a visita íntima de sua namorada, a procuradora Larissa Maria Sacco, aos finais de semana. Dias atrás perguntou a um agente penitenciário se poderia mandar flores para ela, o que, obviamente, foi negado. ‘ O doutor às vezes faz pedidos desta natureza. Parece que não caiu a ficha que está preso ’, diz P., diretor de segurança. Abdelmassih amarga uma sucessão de derrotas processuais. No dia 24, uma votação parcial no Tribunal de Justiça de São Paulo negou o quinto pedido de habeas-corpus do médico. Quatro dias depois, seus advogados entraram com um pedido de desistência do habeas-corpus no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Com isso, a defesa de Abdelmassih poderá entrar com novo pedido no mesmo tribunal e apresentar outros argumentos a favor do médico. Corintiano de coração, ele assiste na cela aos jogos do seu time. Quando Ronaldo marcou o gol no empate contra o São Paulo, no último dia 27, praticamente não comemorou.

Alexandre Nardoni, 31 anos

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CELA: 105/PAVILHÃO 2

Por que está preso: é acusado de matar sua filha, Isabella Nardoni, com a mulher Anna Carolina Jatobá

Nardoni caminha apressado. Os cabelos estão mais compridos que no dia 16 de maio de 2008, quando ele chegou à Tremembé. Carrega nos braços uma televisão de 14 polegadas que acabara de receber – após a mesma ser aberta, examinada e passada no raio-x. Foi presente de família. Quando cruza com a reportagem, na entrada do Pavilhão 2 – onde ele divide a cela 101 com mais quatro presos, entre eles um mestre em linguística e um médico-, aperta ainda mais o passo. ‘ Alexandre! ‘’, chama o diretor de segurança P.. Nardoni não para. O diretor repete o chamado: ‘ Alexandre !’ Desta vez ele se vira e diz, um tanto aflito, que a televisão já foi verificada e que agora irá para sua cela. Assim que ele se retira, o diretor comenta: ‘Esse aí chegou muito assustado. Hoje está completamente adaptado à vida em Tremembé ’. Nardoni trabalha no setor de rouparia. É responsável por separar a roupa de cada preso: o que vai para a lavanderia e o que volta para as celas. Cumpre expediente de seis horas por dia. Recebe, religiosamente, a visita dos pais nos fins de semana. Seus dois filhos com Anna Carolina Jatobá, Pietro, de 4 anos, e Cauã, de 2, costumam vê-lo de dois em dois meses. Troca até hoje correspondências com Anna Carolina, que também está em uma penitenciária em Tremembé. Os dois devem ir a júri popular ainda este ano.

Cristian e Daniel Cravinhos, 33 e 28 anos

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CELA: 71/PAVILHÃO 1

Por que estão presos: confessaram participar do assassinato do casal Manfred e Marísia von Richthofen

Cristian e Daniel Cravinhos são como água e vinho. O primeiro é falante, articulado, diz o que quer. Daniel é calado e introspectivo. Eles chegaram a Tremembé no dia 22 de julho de 2006. Passados três anos, estão completamente integrados ao cotidiano da penitenciária. Cristian, por exemplo, toca bateria nas missas e nos cultos evangélicos do presídio- ‘ apesar de ser espírita ’. Daniel ajuda a organizar o campeonato de xadrez do Pavilhão 1. No ranking geral, ele está entre os cinco primeiros. Também está aprendendo a tocar gaita. Cristian é o único preso dos famosos que tem cadastro na biblioteca. Alguns dos autores registrados na sua ficha: Cecília Meireles, Manoel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. ‘Mas o meu poeta preferido é Fernando Pessoa.’ Ele arrisca declamar os primeiros versos do Poema em Linha Reta: ‘Nunca conheci quem tivesse levado porrada… ’ Na cela 71, ele começou a pintar. Paisagens da natureza e animais são temas recorrentes em seus quadros. Assim como Suzane von Richthofen, que está na penitenciária feminina de Tremembé, os irmãos Cravinhos pediram à Justiça para cumprirem o restante da pena (eles foram condenados a quase quarenta anos de prisão) em regime semi-aberto.

Lindemberg Alves Fernandes, 23 anos

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CELA: 12/PAVILHÃO 1

Por que está preso: é acusado de matar, após manter em cárcere privado por 100 horas, sua ex-namorada, Eloá Pimentel, de 15 anos

Ao contrário dos outros presos, Lindemberg não tem com quem conversar antes de dormir. Está sozinho na cela 12 do Pavilhão 1, destinado a quem não tem curso superior, a filhos de policiais e agentes penitenciários. Frequenta, semanalmente, os cultos evangélicos do templo ecumênico da penitenciária. Ajoelha, reza, canta e bate palmas. Trabalha na oficina de montagem de torneiras. Na quinta-feira (24), conversava alegremente com dois colegas. Em nada lembra aquele jovem que chegou à penitenciária, no dia 20 de outubro de 2008, perturbado e com um olho roxo. Paraibano da cidade de Patos, Lindemberg protagonizou em Santo André o mais longo caso de cárcere privado do estado de São Paulo. Depois de 100 horas de terror, a jovem Eloá Cristina Pimentel e sua amiga Nayara Silva, 15, foram baleadas pelo ex-namorado da adolescente. Todo fim de semana, ele recebe a visita de sua mãe. Suas duas irmãs já foram vê-lo cinco vezes cada uma. No próximo dia 20, ele irá comemorar seu primeiro aniversário na penitenciária de Tremembé. Vai completar 24 anos, ainda à espera de seu julgamento.

João Rodrigues, 41 anos

CELA: 13/PAVILHÃO 1

Por que está preso: confessou ter matado os dois filhos, João Vitor, de 13 anos, e Igor, de 12

O ex-vigia João Alexandre Rodrigues ficou conhecido em agosto de 2008, quando os corpos de seus filhos, João Vitor e Igor, foram achados aos pedaços em um caminhão de lixo de Ribeirão Pires, interior de São Paulo. Ele confessou ter asfixiado os meninos, depois esquartejado, queimado e, por último, deixado na rua, em sacos plásticos, os corpos das crianças. Foi indiciado, junto com sua esposa, Eliane Aparecida Antunes Rodrigues, por duplo homicídio qualificado, vilipêndio e ocultação de cadáver. ‘ Sinto saudade deles ’, disse Rodrigues, que aguarda em Tremembé a data do seu julgamento. ‘ Costumo andar sozinho, ainda não tenho muitos amigos por aqui ’, completa ele, enquanto empilha pedaços de madeira na sala de manutenção.

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