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Contemporâneos

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 18h52 - Publicado em 9 abr 2010, 20h33

Uma frase, lida há muito tempo, já não sei onde, instalou no meu espírito questões intrigantes, especulações. Imagino que ela poderia ser a conclusão ou a abertura de um artigo, ou ambas. Eis a frase e o autor:

“Por que tive de nascer com tais contemporâneos?” (George Bernard Shaw, dramaturgo e pensador irlandês, 1856- 1950.).

Conheço a frase por citação, fora de contexto, somente em tradução, não sei de quem ele falava. Talvez de tiranos como Stalin e Hitler, mas o homem viveu 94 anos e nem o ano da frase eu sei, qual a safra. Todas as safras dele são boas. Shaw teve contemporâneos brilhantes como Bertrand Russell, James Joyce, Franz Kafka, Paul Valéry, Sigmund Freud, Friederich Nietzsche. A frase pode ser de um personagem de suas peças. Pode ser que se referisse a políticos, que poluem qualquer época. No fundo, não interessa a quem ele se referia; sabê-lo diminuiria o poder inquietante da frase, fecharia o seu sentido. Gosto dela assim, aberta, errante, sem endereço.

No ano em que ele morreu, 1950, o dramaturgo francês Henry de Montherlant botou esta fala na peça Malatesta: “Se eu pudesse mudar um pouco de contemporâneos”. É um lamento, mas a ideia é a mesma.

Vamos passear com essa palavra.

Quem são os nossos contemporâneos, se cada um de nós, em cada região, cada país, vive em um mundo cultural, tecnológico e político diferente? Contemporâneo não é só o que há de mais avançado, a vanguarda, mas também o que estagnou há séculos, como o sertão.

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Há contemporâneos “melhores” em alguma época? É a história escrita que torna grandes os homens ou eles são mesmo enormes?

Em todas as épocas existem horrores e horrorosos. Períodos apresentados para uns como plenos de feitos heroicos, como os das Cruzadas, são um mar de atrocidades. A conquista do novo mundo pelos desbravadores dos mares e das matas foi um absurdo de crueldades e ambições e crimes contra a humanidade. Seriam os heróis de então melhores contemporâneos? E hoje? George W. Bush, por exemplo. Merecíamos o Bush?

Contemporâneo é usado como critério de valor. Chamar alguma coisa de contemporânea soa sempre como elogio. Em artes visuais, é o argumento definitivo, virou atributo de qualidade. Mas será? Van Gogh não era “contemporâneo” quando perambulava pela Provença, gênio desconhecido. “Contemporâneo” era algum pintor de sucesso nas galerias oficiais, desconhecido hoje; Van Gogh não vendeu um único quadro.

A palavra engana, como um jogador de futebol a palavra engana. O dicionário diz que contemporâneo é o que é do mesmo tempo, da mesma época; ou também o que é da época atual, do tempo atual. Eis a armadilha, quando só colamos o adjetivo nas grandes e belas coisas atuais.

Contemporâneos são, sim, o trabalho de pesquisa com as células-tronco, as maravilhas da tecnologia, as conquistas esportivas, mas são também o crime violento por motivo fútil, a popularização das drogas, o cinismo político, a corrupção institucionalizada. Contemporâneo é poluir, consumir, agredir, levar vantagem, passar por cima, não ter ideologia.

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O hábito de as pessoas dizerem “No meu tempo” não será um pouco isso, recusa do tempo atual? Como se elas dissessem: “Este não é o meu tempo, é o seu”. “No meu tempo não era assim. Não sou seu contemporâneo.”

Já as crianças estão bem satisfeitas com seus amigos de escola, de bagunça, de jogos, de tapas, de feitos, e também com seus ídolos e heróis. Pelo menos esses, meu caro gênio irlandês, estão bem satisfeitos com seus contemporâneos.

e-mail: ivan@abril.com.br

 

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