Poderão dizer que me repito. Quem não se repete? — pergunta o sol num apólogo lido na minha infância. A repetição é a graça das rimas, a obrigação dos relógios, a razão de ser dos ritmos. Até Machado de Assis, mestre dos mestres, mais de uma vez repetiu ideias, até anedotas. Com um intervalo de quatro anos, contou duas vezes a história de um homem que passou por um casebre em chamas na beira de uma estrada, ao lado do qual estava sentada uma velhinha chorando. Aproximou-se e perguntou-lhe se a casa era dela. Ouviu que sim, e que ela havia perdido tudo no fogo. Perguntou então o homem com polidez: “A senhora permite que eu acenda ali o meu charuto?”.
+ Crônica: Conversa de celular, por Mário Viana
A história muda pouco de uma versão para a outra: na de 1885, é charuto; na de 1889, é cigarro. Digo já por que falo em repetição. Tendo-me cabido um dinheirinho de miúda herança, pensei em investir dando entrada em um pequeno apartamento em lançamento, desses anunciados com 62 metros quadrados, três quartos, suíte, varanda, duas garagens e mais confortos impensáveis nessa metragem. Fui lá para ver uma unidade decorada. Caros, havia até um “cantinho para o cão”! Não levei fita métrica para conferir se os móveis eram de casinha de boneca ou se os cômodos eram maiores do que o projetado; o fato é que o básico cabia. Desisti do negócio quando me lembrei do amigo cuja compra frustrante relatei um dia.
Conto, reconto. Mudou-se a família — marido, mulher, dois meninos — para o apartamento comprado na planta, pago com sacrifício. Sabiam que era pequeno, um três dormitórios de 64 metros quadrados de área, mas não imaginavam que fosse tanto. Metros quadrados são noções abstratas para certas pessoas. Adaptaram-se, entre decepções e sacrifícios. Tinham planos de botar os dois garotos no mesmo quarto e transformar o terceiro em escritório e sala de tevê. Ilusão. As duas camas não cabiam no dormitório, ou teriam de desistir do armário, e os garotos recusaram com veemência a ideia de beliche. Sem escritório, a televisão teria de ficar na sala. Aí, não caberiam, juntos, o rack com a tevê, o sofá, a poltrona, a mesa de jantar com quatro cadeiras e o aparador.
Para aliviar a sala, tentaram botar a poltrona num dos quartos dos garotos. Não passava nas portas. A cozinha foi outro problema. A geladeira e o freezer não cabiam lado a lado, senão a porta que dava para a sala não seria aberta totalmente. Os dois aparelhos não poderiam também ficar frente a frente, pois a cozinha tinha o formato de um corredor curto. A solução foi tirar a porta que isolava a cozinha, fingir uma passagem em arco, com prejuízo para os bifes que as crianças amam, o fígado acebolado que o marido adora, a dobradinha e o peixe frito que todos curtem. Armários, só suspensos sobre a pia. O freezer, decidiram vender.
No banheiro do casal, tiveram de desistir do gabinete debaixo do lavatório, pois as pernas do marido batiam nele quando sentado no vaso. Os garotos tomam cuidado ao lavar os pés, senão batem a cabeça nas paredes. Foi preciso trocar a porta entre a cozinha e a área de serviço por uma sanfonada, a fim de ganhar espaço. No varal, secar lençol, só de solteiro. Tentaram lavar uma colcha de casal e ela esteve a secar dobrada durante quatro dias, cada manhã virada de um lado. No fim, cheirava a mofo e a gordura de bife, que evaporava da cozinha. Ó céus! Na cidade vertical, os apartamentos populares correspondem aos sobradinhos de antigamente. Mas quanta diferença!