Chuva em apartamento é diferente de chuva em casa. Quem nunca morou lá e cá não saberá do que falo. Em apartamento ela é paisagem, às vezes perturbadora, com seus vapores encurtando o visível; às vezes assustadora, raios exibindo-se como nas óperas. Numa casa ela te pega, está ali, junto.Te pega no sentido de ser mais pessoal, a umidade dela te toca como um fantasma, sem corpo, sem molhar. Está ali.
A chuva convoca em nós o contemplador.
No apartamento a vemos em tela panorâmica, um espetáculo que se oferece, as cores se fechando em cinza no horizonte cada vez mais próximo, o desenho nervoso dos relâmpagos, os novelos de nuvens inquietas misturando tons sombrios, e, plateia, a vemos desabar, teatral.
Na casa, seu assédio nos envolve, é o bater dos pingos nas telhas, nas calhas, nas folhas do jardim, a água escorrendo das bicas do telhado e batendo no chão, a enxurrada, a música, o cheiro da terra, o friozinho que vem com ela, a vidraça da janela em lágrimas, o zoom do olhar focando a folha chorosa do tinhorão, até os passarinhos somem e se calam, não é hora para estripulias.
Ou ela nos pega ou nós a pegamos — é como se diz. “Pegueia maior chuva”, ou “a chuva me pegou”. Isso quando estamos na rua e ela nos surpreende, imprevidentes, correndo dela, procurando abrigo, quem dera um guarda-chuva. Já fomos crianças de correr não da chuva, mas para a chuva, brincar na chuva, tomar banho de chuva. Adultos, nós nos armamos contra ela, nos defendemos, ela não é confiável. Chega um momento em que nos preocupamos mais com as roupas.
A chuva é fotogênica, literária, poética, dramática, musical.
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Artistas maiores procuraram captar sua magia, beleza, brutalidade, delicadeza, seu incontrolável poder. Da delicadeza fala este verso de e.e. cummings ao descrever sua amada: “Ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas”. Do poder de significar tudo e levar de roldão coisas e sentimentos fala a extraordinária canção de Tom Jobim: “É pau, é pedra, é o fim do caminho/ é um pouco sozinho (…) São as águas de março fechando o verão / É a promessa de vida no teu coração”. De um amor avassalador fala Carlos Drummond de Andrade no divertido Caso Pluvioso: “A chuva era maria. E cada pingo / de maria ensopava o meu domingo”; “E quanto mais as ondas me levavam / as fontes de maria mais chuvavam”; “Continentes / já submergem com todos os viventes”; “e Deus, piedoso e enérgico, bradou: / Não chove mais, maria! — e ela parou”. Do seu poder de acordar sentimentos em quem a contempla fala o mesmo Drummond: “A chuva pingando / desenterrou meu pai”. Da alegria de uma enxurrada amorosa fala Gene Kelly na cena que dá nome ao clássico filme Cantando na Chuva. Enfim: pintores, fotógrafos, músicos, cineastas, romancistas, dramaturgos, compositores de óperas também contracenaram com ela.
Quando a chuva não vem, clamamos: reservatórios à míngua, mosaicos de barro ressecado no que era o fundo dos açudes, gargantas e narizes secos, verduras mais caras nas feiras. Quando ela vem, clamamos: enchentes, condução difícil, trânsito parado, roupa molhada, verduras mais caras…
A moça da meteorologia diz “tempo bom” significando sol. Sim, lavrador, ela é citadina, e os citadinos temos esse jeito torto de estar no mundo. Falando por todos nós queixa-se dela o poeta Fernando Pessoa, em O Dia Deu em Chuvoso: “Deem-me o céu azul e o sol visível. / Névoas, chuvas,escuros — isso tenho eu em mim”.
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