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“Meu bairro, Perdizes, é como se fosse Irará”, diz Tom Zé

O músico baiano Tom Zé entra fundo em pesquisa sobre as origens do nosso idioma e fala sobre a capital paulista em seu novo disco, 'Língua Brasileira'

Por Tomás Novaes
8 jul 2022, 06h00

“Meu pai me habituou a acordar às 4 da manhã quando ele tinha padaria. No princípio, sofri o diabo, mas depois virou fuso horário. Aqui em casa acordo às 4 todo dia. E durmo às 9 da noite. Só quando tem futebol durmo mais tarde”, contou o corintiano Tom Zé, 85, em entrevista por telefone à Vejinha na segunda (4) — ele havia trabalhado o domingo inteiro e dormido pouco, mas não perdeu o compromisso.

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O baiano mais paulistano do pedaço, nascido em Irará e morador da capital paulista desde 1968, a maior parte do tempo em Perdizes, fala sobre o novo disco, Língua Brasileira (2022), lançado em junho. Idealizado como trilha sonora de peça homônima dirigida por Felipe Hirsch, em cartaz no Sesc Consolação entre janeiro e março, o projeto é fruto de mais de dois anos de pesquisa sobre as origens da nossa língua, desde o tupi e o quimbundo até o celta e o português lusitano. Prolixo e de memória afiada — que, durante a conversa, também foi auxiliado por Neusa, com quem é casado desde 1971 —, o músico comenta ainda sobre o tropicalismo e a pauliceia. Confira:

Como Língua Brasileira se encaixa na sua discografia, como surgiu a ideia do novo álbum?

Quando o Felipe (Hirsch) me disse há dois anos e meio que iria pensar em uma peça com músicas minhas, mandei para ele o disco Estudando a Bossa (2008), que penso que tem coisas mais sofisticadas. Dentro de pouco tempo ele me ligou dizendo “Poxa, Tom Zé, descobri uma música sua que é muito mais próxima do meus temas de trabalho”, que é a canção Língua Brasileira, que está no disco Imprensa Cantada (2003). Felipe trabalhava com especialistas muito sofisticados da língua, como Caetano Galindo, Eduardo Navarro e Yeda Pessoa de Castro. A partir daí, a cada novo assunto era um calhamaço de estudos deles, sobre as origens da nossa língua, sobre o que os indígenas pensavam, sobre o que não pensavam, sobre a alma. Eles não tinham nada a ver com catolicismo, com céu nem com inferno, mas tinham uma coisa que chamavam de “Terra sem mal”, que era um lugar em que não precisariam trabalhar e tudo viria para as mãos deles — o que é citado na música que abre o disco, Hy-Brasil Terra sem Mal.

Não é de hoje que tem contato com o teatro, mas esse é o disco mais cênico que você já produziu. Como é sua relação com o universo teatral?

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Você tocou numa ferida minha. Sempre que vou pro palco — aliás, Caetano que me chamou atenção para isso — eu me submeto a um desafio. Quando era criança, em 1954, por acaso, vi no cinema, perdido lá em Salvador, um filme do Marcel Marceau (1923-2007), aquele mímico da França — que hoje ninguém conhece mais. Rapaz, nem sabia que ia fazer música e aquilo me transformou a vida. Foi uma obsessão. Lembro daquilo como se fosse pegável com os dedos. Logo que comecei a fazer música, era uma coisa de teatro. Sentava com o violão, mas treinava fazer gestos com essa limitação de estar naquela posição, e isso deu certo. Em Irará, teve uma vez que fui cantar para minha namorada e não consegui abrir a boca. Falei: “Não sou cantor, vou largar a música”. Mas estava sempre desenvolvendo dentro de mim, sem eu saber, uma coisa muito ousada, uma pretensão louca de fazer uma modificação no mundo da música.

O disco tomou forma na pandemia, apesar de a peça ter sido prevista para estrear em 2020. O isolamento tornou essa pesquisa mais intensa?

Sou um compositor muito lento. Quando o Felipe começou a mandar os calhamaços, passei a trabalhar dia e noite. Eu não saía, porque trabalho domingo e sábado, a semana toda. Não ia a lugar nenhum. Só depois que aprontei as músicas, ele estreou a peça e vi o espetáculo é que comecei a ir para a rua. Queria ir ao supermercado e diziam: ‘Você não pode ir, porque você abraça todo mundo, e não sei o quê’, e foi aí que fui saber o que era pandemia — isso já tinha mais de um ano de isolamento. Depois dessa estreia, continuei trabalhando porque, mesmo depois que as músicas foram pro palco, elas mudaram muito.

Na faixa San Pablo, San Pavlov, San Paulandia, a letra, sobre São Paulo, escrita pelo poeta Douglas Diegues, diz: “O que seria de vostras noches salbajes sem nosotros, los nordestinos?”. Como você, baiano e morador da cidade há mais de cinquenta anos, se encaixa no tecido social de São Paulo?

A gente em São Paulo está sempre aprendendo sobre São Paulo. Estreei aqui em 1968 com um disco todo sobre a vida da cidade (Grande Liquidação). Era algo que já fazia na Bahia: minha música era sobre a vida da cidade. Quando cheguei a São Paulo, fiquei meio desorientado. Lembro que fui assistir ao São Paulo, Sociedade Anônima (1965), de Luís Sérgio Person. Quando acabou, eu saí com o coração na mão: aquilo contava o impulso que levava essa cidade para a frente. Aquilo me deixou transtornado, bêbado, como quem toma uma droga. Então, comecei a trabalhar com esse elã que o filme me deu. Sou da roça, em Irará a gente é criado com ternura perto da gente. Mesmo quando cheguei aqui, que era um lugar de dar muito pontapé em nordestino, existia um certo nível de ternura. E meu bairro, Perdizes, é como se fosse Irará: vivo como em Irará, falo com todo mundo, ninguém está ligando para a minha presença, porque sabem que aqui sou coisa velha. Quando a pessoa me para na rua para conversar, eu sei que não é daqui.

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Em uma entrevista, Gilberto Gil falou sobre os cinquenta anos de Expresso 2222 e o pós-tropicalismo. Citou você ao dizer que “foi o pós-tropicalismo que deu margem à plenitude, à realização mais plena de exercícios mais abertos de linguagem musical e poética”. Como você se insere no pós-tropicalismo?

Tenho muito respeito e admiração por Gil e Caetano — e sei a diferença que tem de mim para eles. Gil e Caetano são outra coisa, não sou nenhum jegue inocente para não saber. Quando Caetano fez, por exemplo, É Proibido Proibir, por causa do problema dos estudantes da França com as universidades, ouvia falar naquilo, mas não podia me aproximar: já tinha me aproximado de São Paulo, o que era uma dificuldade. Aí, o Caetano vem com essa música que foi vaiada no Tuca (em 1968). Convivia com coisas que estavam muito acima do que eu pensava. O Gil voltava (do exílio) com o disco Expresso 2222, ouvi e fiquei petrificado. Compus Menina Amanhã de Manhã quase plagiando a música Expresso 2222, com a batida ligeiramente parecida — porque nunca vou fazer uma batida do Gil. Se olhar essa música, vai ver como é canhestra em relação ao que o Gil faz.

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Publicado em VEJA São Paulo de 13 de julho de 2022, edição nº 2797

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