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Quarentena altera os rituais de luto tradicionais

Iniciativas on-line elaboram manuais para vivenciar o processo de despedida, homenagear os mortos e honrar a vida mesmo virtualmente

Por Helena Galante Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 8 Maio 2020, 14h02 - Publicado em 8 Maio 2020, 06h00

“Pra todo mundo que cruzava seu caminho, ela era a Vó.” Wilma Bassetti Lirola, 76 anos, vítima do coronavírus em São Paulo, não é um número. “A falta que ele faz é a prova de todo o bem que ele fez.” Alberto Bandeira Peret, 92 anos, vítima do coronavírus no Rio de Janeiro, não é um número. “O funcionário mais prestativo da livraria Independência.” José Augusto de Souza, 58 anos, vítima do coronavírus em Mossoró, não é um número. Esses e outros memoriais fazem parte do projeto Inumeráveis, criado pelo artista paulistano Edson Pavoni. Em colaboração com Rogério Oliveira, ele homenageia quem o cotidiano bruto da pandemia reduziu a estatística. Em menos de uma semana, mais de 33 000 pessoas passaram a seguir a página no Instagram. Pavoni relata seu desconforto de acordar todo dia com um número novo de mortes: “Minha pesquisa é sobre conexão. Vi que esses números iam perdendo significado e a gente se tornando insensível a eles. Tinha a inquietude de falar que não é sobre uma curva numérica, são pessoas”. A iniciativa de coletar relatos de vida para falar da morte integra um movimento que ganhou força com a crise atual: o de olhar para o luto de forma menos reducionista.

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(Marina Papi/Divulgação)

Presidente da Associação dos Cemitérios e Crematórios do Brasil e do Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil, Gisela Adissi trabalha há dezoito anos no setor funerário. “Havia certa percepção negativa sobre os rituais fúnebres, como o velório. Poucas pessoas ainda faziam uma missa de sétimo dia, por exemplo”, afirma Gisela. “Agora, com a privação do contato, ficou claro quanto os rituais fazem falta e são importantes para elaborar o luto.” Com a chegada do novo coronavírus ao país, o primeiro passo de Gisela foi elaborar um protocolo de práticas para o setor, como medidas de segurança para funcionários. As necessárias providências burocráticas, porém, não chegavam nem perto de dar conta do vazio emocional de quem fica. Foi então que ela e mais seis amigas da plataforma digital Vamos Falar sobre o Luto? lançaram a cartilha Novos Rituais do Luto em Tempos de Distanciamento Físico. “O ritual é tudo o que traz consolo. Com velórios e enterros comprometidos, como a gente transforma esse contato num bilhete, numa conversa de Zoom?”, pergunta Fernanda Figueiredo, também integrante do projeto.

(Marina Papi/Divulgação)

As soluções apresentadas podem até parecer simples, mas às vezes escapam à memória num momento conturbado. Incluem sugestões como escrever uma carta (embalada em saco plástico e devidamente higienizada) para entregar a um paciente internado em fim de vida ou pedir à família e amigos que acendam uma vela e compartilhem por WhatsApp o momento após a perda de um ente. Qualquer proposta não tem a intenção de diminuir a gravidade inegável da situação. “Não vai ser mais fácil, nem mais leve”, afirma Tom Almeida, idealizador da plataforma @infinito.etc. “Hoje a forma como vivemos a morte tem dois sentimentos predominantes, a dor e o medo. Quando aprendemos a nos colocar de maneira mais vulnerável, a falar sobre os sentimentos, podemos abrir espaço para a morte ser uma experiência completa, que inclui presença, amor, gratidão…” No Guia de Rituais de Despedidas Virtuais, há instruções para ajudar quem deseja realizar uma cerimônia digital. Vale encerrar o encontro, por exemplo, com uma música para homenagear o falecido. A partir da próxima semana, será também possível contratar o serviço de suporte avançado, que inclui profissionais como cerimonialista para conduzir o encontro e um escritor para fazer um obituário bonito. Para este domingo (10), Dia das Mães, Tom Almeida está organizando uma cerimônia coletiva para homenagear as mães que faleceram em decorrência da Covid-19 e também ajudar quem, por causa da quarentena, teve de riscar da agenda pequenos gestos simbólicos, como levar flores ao cemitério.

(Marina Papi/Divulgação)

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Diante do compreensível medo da morte — e do tabu que barra qualquer conversa sobre o assunto —, os especialistas investem numa linguagem artística para iniciar uma conversa. Valem ilustrações de traços delicados como as destas páginas, feitas pela artista Marina Papi para o site Vamos Falar sobre o Luto?, ou até abordagens bem- humoradas, como as dos palhaços. Fundador dos Doutores da Alegria, em 1991, Wellington Nogueira é também professor da aula “Diálogos com a morte”, cuja edição mais recente aconteceu na quinta (7), na The School of Life. Entre os tópicos abordados estão os nossos próprios limites para nos preparar para as perdas diárias e as transições de vida e algumas ferramentas para vivenciar o sofrimento. “Uma vez conheci uma profissional de saúde que tinha sido freira. Nós nos reunimos com médicos e enfermeiros para contar histórias, e muitas delas tinham a ver com a morte. Ela me disse que tinha aprendido que era assim, contando histórias, que trazíamos alguém à vida. Para ela, era o mistério da ressurreição, e não era pouca coisa”, lembra Wellington. “Dentro dos hospitais, entendi dimensões da morte. Perdemos muitas crianças, e não dava só para falar ‘bom, a vida é assim’.” Nessas horas, os artistas se reuniam e faziam rituais simples, como ir ao refeitório do hospital comer a comida favorita da criança e falar com carinho sobre ela. “Quando confrontamos essa situação, numa relação que não é pautada pelo medo, ficamos olho no olho com a morte. E isso dá um alívio enorme, traz consciência e faz ter vontade de viver”, afirma o palhaço

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(Marina Papi/Divulgação)

Publicado em VEJA SÃO PAULO de 13 de maio de 2020, edição nº 2686.

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