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Ney Matogrosso: ‘Não devemos satisfação nem licença para existir’

Prestes a fazer um dos maiores shows da carreira, o artista inspira uma cinebiografia, revisita sua trajetória e reforça sua voz política no contexto atual

Por Mattheus Goto
9 ago 2024, 06h00
Artista em metamorfose: Ney Matogrosso, para além da música
Artista em metamorfose: Ney Matogrosso, para além da música (Bob Wolfenson/Divulgação)
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Ao subir no palco, Ney Matogrosso cria um suspense. O artista usa um figurino que cobre o rosto e simboliza a constante metamorfose em sua trajetória.

Nascido em Bela Vista, no Mato Grosso do Sul, vive acostumado com mudanças desde pequeno. Teve uma infância nômade, seguida de uma juventude entre São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Nesse período, consolidou o princípio inato da renovação e reinvenção, desafiando regras e padrões.

Ney revisita todas as suas versões diante da plateia na turnê Bloco na Rua, que chega a São Paulo neste sábado (10). A apresentação no Allianz Parque terá um repertório de sucesso, com recursos tecnológicos, visuais e cenográficos elevados a nível de estádio — em um dos maiores shows da carreira.

Com uma energia incansável, o cantor, compositor, dançarino e ator de 83 anos também prepara o lançamento de um novo disco, com o duo Hecto, para novembro e é a inspiração para uma cinebiografia em produção, nomeada em homenagem à sua icônica canção Homem com H.

O que está preparando de especial para o show?

Esse show é uma sequência do trabalho que venho realizando. Foi um sucesso enorme desde que foi para o ar em 2019. Queria fazer um trabalho despreocupado e cantar um repertório sem música inédita. Passamos por lugares imensos, com muita plateia. Agora faço em São Paulo, em um lugar ainda maior. Acrescentei algumas coisas. Ensaiei Balada do Louco e Pro Dia Nascer Feliz. Tenho uma banda que toca comigo há vinte anos, temos muita afinidade.

Para você, o que significa esta apresentação na cidade?

Foi onde surgi artisticamente. Tenho uma ligação muito grande. Pouco tempo atrás, minha mãe disse uma coisa que eu não sabia: eu fui gerado em São Paulo. Na Praça da Sé, em 1940. Entendi o porquê da ligação. É a maior capital do Brasil, a mais louca.

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Que artistas são suas referências?

Quando morava em Brasília, eu era funcionário público, tinha 19 anos. Brasília não estava pronta. Fiquei hospedado no único hotel da cidade. Chegando lá, me deparei com Caetano Veloso, de cor-de-rosa do pescoço ao pé. Ele tinha ido fazer um show com Gilberto Gil e Rita Lee. Menina, eu tomei um susto tão grande. Naquela época, homem não podia ter rosa em nada do que vestia. E o Caetano, com aquele cabelo comprido até o ombro, lindo, todo de rosa. Pensei que, se eu fosse artista, queria ser algo assim. Não queria ser ele, mas queria provocar aquela sensação que tinha me provocado. Então, Caetano é uma grande referência.

Como você se sente ao ver a nova geração de artistas não heteronormativos?

Não fico achando que quem causou o impacto fui eu. Vejo muitos artistas trans agora. Acho ótimo. Convidei a Liniker e a Filipe Catto para fazerem um show no Rio. A banda ficou impressionada. Não sabiam direito como lidar. Quando cantaram, todo mundo tirou o chapéu. Tem muitas pessoas que fogem da regra hoje em dia. Sempre que fogem, acho interessantíssimas.

Como você descreve o momento sociopolítico atual?

Teve uma abertura relativa, mas ao mesmo tempo regrediu. O pensamento já foi mais expansivo, agora deu uma encaretada. Porque o comando era mal-intencionado. O governo não tem que se meter na vida particular das pessoas, nem determinar quem vai dormir com quem. Não devemos dar satisfação a ninguém, nem pedir licença para existir. Há uma polarização, infelizmente. É tristonho observar a divisão de um país.

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“São Paulo foi onde surgi artisticamente. Pouco tempo atrás, minha mãe me disse uma coisa que eu não sabia: fui gerado na Praça da Sé”

Ney Matogrosso

Quais são os desafios da arte e do artista no contexto atual?

As gravadoras não mandam mais no jogo. Não comandam mais o espetáculo. Existe a possibilidade de criar de forma independente. Só que há uma dificuldade de atravessar, de estourar a bolha. Agora é tudo pela internet. Você ouve uma música e nem sabe quem é o compositor. Me incomoda muito.

Qual é sua opinião sobre novas tecnologias, como a inteligência artificial?

Sou crítico a tudo que se apresenta como novidade. Não mergulho de cabeça. Presto atenção de longe. É bobagem ficar preocupado com isso. Elas vêm e não voltam mais. Tem que ter regras. Inteligência artificial é um veículo. O papel do artista se reforça. As pessoas vão continuar com seus talentos em um novo mundo. Vai ser novidade para a gente, mas, logo, logo, deixa de ser.

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Como vai ser a cinebiografia?

O Esmir (Filho, diretor) me mostrou doze roteiros do filme. Entendi que não vai ser a minha vida. É uma olhada sobre o assunto. A única coisa que pedi era que não houvesse mentiras. Sempre li coisas loucas a meu respeito. Aceito que as pessoas trabalhem com liberdade, mesmo sobre minha vida.

Estreou em maio A Alegria É a Prova dos Nove, dirigido por Helena Ignez e estrelado por você. Como é a experiência na frente das câmeras?

Cinema é uma coisa que me atrai muito. Quando morava em Padre Miguel, no subúrbio do Rio, estudava em Campo Grande. Lá, tinha um cinema enorme e o porteiro deixava menor de idade entrar. Tenho uma memória afetiva destes grandes mestres, Pasolini, Fellini, Visconti. Queria ser ator antes de ser cantor. O primeiro filme que fiz com a Helena foi Luz nas Trevas (2010). Foi um papel que exigiu muito de mim. A primeira cena era eu preso numa cela, com uma janelinha do lado de fora para outras celas cheias de atores. Tive um texto tão enorme. Pedi para ela: “Pelo amor de Deus, não me faz passar essa vergonha, deixa tudo escrito nas paredes”. Estava completamente envergonhado de estar na frente daqueles atores. Depois, engrenei e foi tudo normal.

Como é sua rotina hoje?

Sou caseiro. Não sou de rua. Quando estou trabalhando muito, chego na minha casa e fico na minha. Tenho minha gatinha, que dorme comigo. Minha vida é regrada. Sei que tenho que trabalhar, gasto muita energia no palco. Depois de São Paulo, tem um monte de coisa marcada na Europa.

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O que lhe dá paixão para continuar?

Sou muito feliz trabalhando. Gosto muito de me apresentar, subir ao palco, cantar para plateia. Mais que de fazer disco. Partindo desse princípio, a chama se mantém acesa em mim. Não sei se vai se apagar, em algum momento vai, mas continua muito acesa.

Publicado em VEJA São Paulo de 9 de agosto de 2024, edição nº 2905

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