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Driblando preconceito, mulheres ganham espaço na coquetelaria e na gestão de bares

Conheça as histórias de Alice Guedes, Dhara Sabatel, Glaucia Fernandes, Laís Ladrine e Lily Scott, que atuam em estabelecimentos badalados de SP

Por Vanessa Barone e Luana Machado
30 ago 2024, 06h00
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Seis mulheres talentosas contam sua experiência  (Roberto Setton/Veja SP)
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Certa vez, enquanto tirava um chope, atrás do balcão do bar Pirajá, em Pinheiros, Tânia Deoclecio foi surpreendida por um cliente que, ao vê-la, gritou: “Mulher tirando chope? Agora, ferrou!”. Com toda a calma, Tânia respondeu que ele deveria se acostumar. “Sou a nova gerente daqui”, disse a administradora de empresas de 45 anos — vinte deles à frente de vários negócios do grupo Cia Tradicional de Comércio, dono de estabelecimentos como Astor, Original, Bráz Pizzaria e Ici Brasserie, entre outros.

Atualmente, Tânia gerencia o bar Astor do shopping JK, na Vila Olímpia. Coincidência ou não, a unidade — a única da rede comandada por uma mulher — é uma das mais elogiadas pelos clientes. “Nosso atendimento tem leveza, cuidado, sorriso, sem deixar de ser ágil.” Situações como a vivida por Tânia desvendam um pouco da rotina das mulheres que decidem adentrar um segmento preponderantemente masculino — o de bares — em funções que vão de bartender a gerente, passando pela gestão do RH.

Até alguns anos atrás, bares eram ambientes pouco convidativos para mulheres circularem sozinhas, clientes ou funcionárias — haja vista os inúmeros casos de assédio e desrespeito divulgados. Felizmente, parece haver um esforço do setor para equiparar a presença de homens e mulheres trabalhando não apenas em bares, mas também em restaurantes. Uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), com mais de 1 400 estabelecimentos de todo o Brasil, mostrou que 41% deles declaram já ter implantado a paridade de gênero nas equipes e na gerência, enquanto 30% pretendem implantar em breve.

A maior presença de profissionais mulheres no setor de bares coincide com uma maior frequência da clientela do sexo feminino — diz quem trabalha na área. “Elas também querem sair para se divertir, como fazem os homens”, diz Glaucia Fernandes, de 44 anos, que comanda os departamentos de marketing e recursos humanos do grupo Botequim há um ano e meio. O grupo é dono da rede Botequim São Paulo, com seis unidades distribuídas entre São Paulo e o ABC.

Glaucia acredita no potencial do público feminino, tanto que implementou uma noite exclusiva para elas no Botequim São Paulo, mesmo diante da resistência da diretoria da empresa (formada por homens). “Nessa noite, só temos mulheres trabalhando, para uma clientela 100% feminina”, explica. A ideia foi um sucesso desde a primeira edição, com direito a fila na porta. “Agora, fazemos a cada dois meses”, diz a executiva, que trabalha ao lado de 25 homens e continua brigando para ter mais mulheres na equipe, certa de que um ambiente profissional com mais diversidade ajuda a criar espaços mais acolhedores.

Com apenas 35 anos, a empresária, produtora e DJ Lily Scott já acumula quinze anos trabalhando na noite. “Comecei sendo hostess de casa noturna”, conta ela, que sempre chamou atenção pelo estilo original e extravagante. “Claro que sofria assédio. Naquela época, isso era comum e a gente nem se dava conta.” Com o passar dos anos, Lily atuou como DJ e produtora de festas, até ir trabalhar com Facundo Guerra, empresário por trás de negócios de sucesso, como o clube Vegas, que funcionou por sete anos na Rua Augusta, e o bar Riviera.

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Há pouco mais de um ano, uniu-se a Facundo e Cairê Aoas (Fábrica de Bares) para inaugurar a Love Cabaret, misto de casa noturna e de espetáculos que tomou o lugar da extinta Love Story — “inferninho” que caiu no gosto da juventude descolada, nos anos 1990. Como sócia, a empresária pôde colocar em prática o seu estilo de gestão — que inclui dar mais espaço para artistas e profissionais da comunidade LGBTQIAPN+. A decisão contribuiu para tornar o local uma das casas mais diversas e democráticas da cidade. “Dessa vez, eu tenho a sorte de trabalhar com homens esclarecidos”, diz Lily.

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A sócia do Love Cabaret (Roberto Setton/Veja SP)

Quando comecei, há quinze anos, o ambiente era muito pior para as mulheres

Lily Scott, 35, sócia da Love Cabaret

A embaixadora do evento Bar Convent São Paulo e consultora de bares, Carolina Oda, 37, experimentou, desde cedo, uma discriminação dupla: por ser mulher e de origem japonesa. “O mercado reforça o estereótipo de que não podemos falar ou reagir”, diz ela, que, antes de enveredar pela consultoria para a criação de cardápios de bebidas, trabalhou por dez anos no segmento de cervejarias artesanais — onde o ambiente é ainda mais misógino. “

Para ter o nosso talento reconhecido temos de nos dedicar e entregar muito mais do que os homens”, afirma ela, única brasileira no júri do World Class 2023, principal concurso mundial do setor. Mas a tendência, felizmente, está mudando: “Hoje, pega mal para a empresa não investir em diversidade”. Diversidade que está presente, mais do que nunca, em uma das funções mais importantes de um bar: a de bartender.

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A gerente do Astor JK (Roberto Setton/Veja SP)

Sendo a única gerente mulher, preciso me impor e mostrar mais resultados do que eles

Tânia Deoclecio, 45, gerente do Astor JK
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Na linha de frente, lidando com clientes nem sempre respeitosos, elas precisam se impor para serem levadas a sério. Mas não perdem mais noites de sono por isso. “Eu me sinto empoderada nessa função”, diz Dhara Sabatel, de 24 anos, que há cinco meses assumiu o posto no Astor JK. Tem cliente que confunde gentileza com paquera? Sim, diz a moça, que sabe se impor e exigir respeito. “Apesar disso, adoro o que eu faço.”

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Dhara Sabatel, à frente do balcão do Astor JK (Roberto Setton/Veja SP)

Tem cliente que confunde gentileza com paquera, mas mesmo assim adoro o que eu faço

Dhara Sabatel, 24, bartender do Astor JK

Outra apaixonada pela arte da coquetelaria, Alice Guedes, 35, iniciou carreira há quinze anos e, atualmente, é chefe de bar do Guarita e do Fechado Bar. Para ela, o cenário de hoje é bem diferente do experimentado no início, quando ainda morava no Rio de Janeiro, sua terra natal. “Quando comecei, a coisa era na base da porrada e do assédio sexual”, diz Alice, que antes de se mudar para São Paulo morou em Buenos Aires e trabalhou no Floreria Atlantico, um dos cinquenta melhores bares do mundo no ranking The World’s 50 Best Bars.

No Guarita, em Pinheiros, é a única mulher na função de bartender, ao lado de outros dois homens. “Encontrei um lugar que me respeita, onde consigo trabalhar em equipe.” Mas, como nada é perfeito, Alice ainda ouve, vez ou outra, frases como “não quero drinque de mulherzinha”, da boca de um cliente desavisado. Porque, sim, diz ela, o machismo impacta até na escolha das bebidas. “Existem crenças como a de achar que gim é bebida de mulher e que homens só bebem drinques amargos”, exemplifica. Tudo mito, tabu e preconceito.

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A chefe de bar do Guarita (Roberto Setton/Veja SP)

Já ouvi muito absurdo no balcão. Hoje, consigo ler a situação, sei como me portar

Alice Guedes, 35, bartender do Guarita Bar e Fechado Bar
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Como explica a bartender Laís Ladrine, 28, chefe de bar do Lardo, na Pompeia, drinques precisam combinar com o paladar e não com o gênero. “Eu sou mulher e gosto de coquetel amargo”, afirma a moça, que é apegada a clássicos como Manhattan, Old Fashioned e Dry Martini.

Em 2018, Laís começou na coquetelaria em um balcão prestigiado: o Frank Bar, que ficava no lobby do hotel Maksoud Plaza. “Foi a minha escola.” Laís passou por outros endereços de São Paulo e, após uma temporada na Argentina, está de volta à cidade por um motivo nobre: montar uma carta de drinques com a sua assinatura para o Lardo.

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A nova chefe de bar do Lardo (Roberto Setton/Veja SP)

Já ouvi muito absurdo no balcão. Hoje, consigo ler a situação, sei como me portar

Laís Ladrine, 28, chefe de bar do Lardo

“Criei coquetéis para todos os gostos”, explica a bartender, que partiu dos drinques clássicos para elaborar receitas que utilizam técnicas da gastronomia e ingredientes brasileiros. Mas o sucesso no mundinho dos coquetéis não veio sem percalços. “Sempre me impus, bati de frente e nunca baixei a guarda.” E, hoje, se algum cliente sem noção chega no balcão perguntando pelo “barman”, Laís tem a resposta pronta: o correto é dizer bartender, pois a profissão não tem gênero.

O futuro dos balcões: Programa social capacita jovens profissionais na área da coquetelaria

Durante a formação em administração hoteleira, em 2012, a pernambucana Fernanda Siqueira, 31, decidiu fazer um curso de coquetelaria para reforçar os estudos da cadeira de bares. Sem trabalho na época, ela optou por um programa gratuito oferecido pelo instituto Learning for Life. “No final, eles indicam a gente para estágios em bares e restaurantes, o que se tornou minha primeira experiência profissional na área. Acabei me descobrindo”, conta.

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Desde 2000 no Brasil, o projeto busca aumentar a diversidade e inclusão na indústria da hospitalidade, em especial na coquetelaria, com foco em pessoas negras, mulheres e população em vulnerabilidade social. “É um setor predominantemente masculino, mas queremos aumentar a participação feminina. Atualmente, as mulheres representam 47% dos nossos formandos”, afirma Viviane Mansi, diretora de relações corporativas da Diageo, responsável pela iniciativa global, que no Brasil já formou 29 000 pessoas de 2000 a 2023. “

É uma área que demanda muito estudo. Quando comecei, quem detinha o conhecimento eram principalmente homens, que não partilhavam facilmente. Hoje, o setor acolhe mais as mulheres, que estão chefiando bares e nas salas de aula. Isso é transformação”, afirma Fernanda, que também passa adiante o que aprendeu em treinamentos na Diageo Bar Academy.

Publicado em VEJA São Paulo de 30 de agosto de 2024, edição nº 2908

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