Os bastidores inusitados da fundação do Nubank e da Loggi

Essas startups paulistanas foram criadas por pessoas que nem se conheciam antes de se tornarem sócias, revela livro Da Ideia ao Bilhão

Por Redação VEJA São Paulo Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 27 Maio 2024, 17h30 - Publicado em 25 set 2020, 01h00
Junho de 2019: funcionários da Loggi celebram título de unicórnio para a startup de logística (Antonio Milena/Divulgação)
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O que uma empresa inovadora tem que as outras não têm? A primeira espiada pode enganar: não são as paredes grafitadas ou a geladeira cheia de guloseimas. Na essência, há uma série de métodos e práticas de gestão que podem ser estranhos a quem se acostumou a trabalhar em uma companhia tradicional: subordinados podem ajudar a contratar seus chefes, criam-se ambientes de erros controlados como aprendizado para experiências futuras e há até processo seletivo com lista de livros, como em um vestibular.

Da Ideia ao Bilhão
Da Ideia ao Bilhão — Estratégias, Conflitos e Aprendizados das Primeiras Start-ups Unicórnio do Brasil, de Daniel Bergamasco (Ed. Portfolio Penguin, 224 páginas; 59,90 reais). Em pré-venda na Amazon, será lançado no dia 28/9 (Divulgação/Divulgação)

Essas práticas, que podem ser replicáveis em outros negócios e profissões, estão detalhadas no livro Da Ideia ao Bilhão — Estratégias, Conflitos e Aprendizados das Primeiras Start-ups Unicórnio do Brasil, do jornalista Daniel Bergamasco, que está em pré-venda na Amazon e será lançado na segunda-feira (28). Startup é uma jovem empresa que busca crescer por um modelo escalável por meio da tecnologia — aquelas que atingem valor de mercado de 1 bilhão de dólares são chamadas de “unicórnios”, ou seja, tornam-se grandes lendas.

A obra retrata as dez primeiras que atingiram esse status no país. Entre elas estão as paulistanas Nubank, empresa de serviços bancários que começou com um cartão de crédito sem anuidade, e a Loggi, plataforma de logística mais conhecida na cidade pelos entregadores em moto com baú azul. Abaixo, um trecho adaptado do livro que conta algo que essas duas têm em comum: foram formadas por pessoas que nem sequer se conheciam antes de se tornarem sócias.

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Enquanto gigantes do comércio eletrônico duelam centavo a centavo para vender suas mercadorias aos clientes, a Loggi fatura por todos os lados, cuidando das entregas de grandes empresas como Mercado Livre e Dafiti. “Existe uma corrida do ouro, e nós estamos vendendo as pás”, diz o CEO Fabien Mendez. Durante a pandemia da Covid-19, Fabien declarou que estava operando em ritmo de “Black Friday” diante do boom do e-commerce, o que compensou a queda dos serviços para grandes escritórios.

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No comando da companhia estão sócios cuja parceria nasceu praticamente de um encontro às cegas. Arthur Debert havia estudado economia na USP e cinema na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap). Estava esperando o início das filmagens de Carandiru, de Hector Babenco, no qual trabalharia como assistente de produção, quando leu um livro sobre programação e se interessou pela área, em que fez carreira. Em 2013, acumulava alguns cargos de liderança em tecnologia quando um amigo o procurou falando de Fabien. “Olha, tem um francês aqui, que é um cara de negócios, mas é muito inteligente. Tinha o mas, porque esse amigo também é engenheiro e tínhamos uma visão muito pessimista em relação às pessoas de negócios”, recorda Arthur.

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Nascido em uma vila de pescadores na Riviera Francesa, Fabien conheceu o Brasil em 2007, quando parte de sua graduação em finanças e estratégia pela Sciences Po, de Paris, foi feita na Fundação Getulio Vargas, em São Paulo. Voltou anos depois contratado por um banco internacional e, em 2012, montou a empresa GoJames, um modelo parecido com o da Uber, no auge da polêmica sobre esse tipo de transporte. Quebrou em um ano. “Foi um bom tapa na cara.”

Arthur Debert e Fabien Mendez
Arthur Debert e Fabien Mendez: conversa no boteco para formar a Loggi (Antonio Milena/Divulgação)

Passou três dias deprimido no sofá da casa de um amigo no Rio de Janeiro e voltou decidido a criar a plataforma de logística Loggi, que no princípio conectava apenas entregadores de moto. Hoje envolve os mais diferentes modais e tem até centro de distribuição próprio.

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Para sua surpresa, em apenas duas semanas alguns investidores-anjo toparam embarcar no projeto, apresentado em treze slides de PowerPoint, e ele captou 2,5 milhões de reais.

“Mal acreditava.” Faltava agora encontrar um cofundador na área de tecnologia. A conversa com Arthur foi a melhor. Gostou do estilo curioso, interessado em temas que vão de filosofia a política, e percebeu que os dois tinham em comum “uma visão cínica do mundo”. Arthur também se animou: “Eu gostei da ideia, achei ele muito inteligente e corajoso”. Com uma acentuada assertividade, Arthur, o entrevistado, conduziu o restante da conversa. Propôs ao futuro CEO que descolasse algum expert em tecnologia para que avaliasse se ele realmente entendia da área.

Devidamente aprovado, Arthur fez mais uma proposta: “Agora a gente vai para um bar, enche a cara de cachaça, come linguiça e vê se no final da noite a gente se atura. É um casamento. Se a gente não gostar de conversar um com o outro, não tem como isso ir pra frente”.

Assim, foram para um bar almofadinha “horroroso” no Itaim e, em quinze minutos, escaparam “para um botecão”. Ficaram até o lugar fechar. Dois dias depois, selaram a sociedade.

O COMEÇO DO NUBANK

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Se a Loggi representa a nova cara da logística no Brasil, no setor bancário ninguém passou a simbolizar tão bem o novo quanto o Nubank. A quarentena, quando mais gente precisou resolver os problemas pela internet, sem poder ir para a rua, só acelerou seu vertiginoso crescimento: passou de 20 milhões para 25 milhões de clientes entre janeiro e o início de junho de 2020. Dias depois, recebeu uma nova validação: foi a instituição brasileira mais bem avaliada pelos próprios clientes na lista global dos melhores bancos da revista Forbes.

A iniciativa de criar um negócio assim, sem agências físicas e com cartão de crédito sem anuidade, veio do CEO David Vélez, colombiano nascido em Medellín. David alimentava o sonho de empreender ao se mudar para o Brasil, em 2008, como partner da investidora Sequoia Capital. As reuniões com os empreendedores para tratar dos aportes que faria eram invariavelmente frustrantes, pois o tempo todo sentia vontade de estar do outro lado da mesa, o dos donos do negócio, com a mão na massa. “Sempre achava o lado de lá mais desafiador, que criava impacto”, recorda. Enxergou na burocracia brasileira um lugar perfeito para desbravadores: penou até conseguir comprar uma linha de celular pós-pago e teve de adiantar doze meses de pagamento antes de fechar a locação de um apartamento em Moema. Não gostou da experiência de abrir uma conta-corrente em uma agência do HSBC na Avenida Faria Lima e decidiu que empreenderia nessa área. Precisava de dois sócios: algum “faixa preta” no setor bancário brasileiro e outro craque para tocar a tecnologia.

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“Se tivesse de descrever a Cris como um estado da matéria, seria o gasoso. Ela preenche qualquer vácuo em uma sala. Qualquer coisa que alguém não esteja tocando, ela vai lá e pega”

Foram três meses tomando cafezinhos. “Eu me encontrei com umas setenta pessoas.” Preencher as duas posições foi tarefa dura. As conversas não davam match. Precisava de outros empreendedores, que topassem um salário simbólico de 2 000 reais mensais para apostar em uma empresa de sucesso no futuro.

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A conversa com Cristina Junqueira fluiu de forma bem diferente. Profissional detalhista, apaixonada pelo alto padrão de atendimento da Disney e por montar quebra-cabeças, ela é formada em engenharia de produção pela USP, com mestrado pela mesma instituição e MBA na Universidade Northwestern. Havia se demitido do Itaú dois meses antes e queria repensar a carreira depois de algumas insatisfações no papel de gerente da área de cartões de crédito. David adorou a conversa e procurou ex-chefes e ex-colegas para saber mais sobre ela. “Se tivesse de descrever a Cris como um estado da matéria, seria o gasoso. Ela preenche qualquer vácuo em uma sala. Qualquer coisa que alguém não esteja tocando, ela vai lá e pega.” As palavras soaram como música clássica para David. “Mas isso é ótimo! Por que seria negativo?”, devolveu. “É que isso gera muito atrito com as pessoas.” O colombiano deu de ombros e concluiu: “Trata-se claramente de alguém sem politicagem. Teremos tanto trabalho que um perfil assim será perfeito”.

Nubank
Cristina Junqueira, David Vélez e Edward Wible: início em imóvel na Rua Califórnia (Divulgação/Divulgação)

O outro sócio, o americano Edward Wible, foi entrevistado por videoconferência por David. Os dois tinham um amigo em comum e uma frase que David frequentemente ouvia sobre ele era “uma das pessoas mais inteligentes que eu conheço”. Formado em computação na Universidade Princeton, com MBA na francesa Insead e passagem pelo Boston Consulting Group, nunca havia atuado como CTO. Os investidores achavam que ele não estava preparado e chegaram a dizer isso em uma reunião em que não haviam notado a presença do rapaz. Acabaram fazendo o acordo.

Em resumo, eram três pessoas diferentes nos aspectos vantajosos de ser desigual — formações, experiências e até países de origem —, mas parecidas no que valia ser coeso, que era a disposição em trilhar o mesmo caminho duro rumo a um objetivo maior. O primeiro imóvel, que escolheram como sede, um sobrado no bairro paulistano do Brooklin, era representativo das duas pontas. Tinha a simplicidade necessária para o começo da jornada e ficava num logradouro que servia de lembrete do tamanho do sonho: Rua Califórnia. A placa com o nome da via serviu como referência involuntária ao estado americano onde fica o Vale do Silício. Era lá que os três líderes do Nubank queriam chegar: ao patamar dos protagonistas da tecnologia mundial.

Daniel Bergamasco
(Paulo Vitale/Divulgação)
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Daniel Bergamasco é jornalista especializado em conteúdo digital, passou por veículos como Folha de S.Paulo, Vejinha e VEJA e tem MBA em inovação.

Publicado em VEJA São Paulo de 30 de setembro de 2020, edição nº 2706.

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