Coleção de manuscritos de personalidades chega ao Sesc Avenida Paulista
Exposição 'A Magia do Manuscrito' traz parte de uma das maiores coletâneas mundiais de autógrafos, fotos raras e cartazes que vão de Napoleão aos Beatles
A exposição A Magia do Manuscrito, programada para ocupar o 5º andar do Sesc Avenida Paulista a partir do fim do mês, vai levar os visitantes a uma viagem no tempo raríssima. O escritor Pedro Corrêa do Lago e sua esposa, Bia, vão exibir pela primeira vez no Brasil parte da deliciosa coleção de autógrafos, fotos, manuscritos, bilhetes, cartas e desenhos raros amealhada pelo casal nas últimas décadas.
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Moradores do Rio de Janeiro, Pedro e Bia possuem um dos maiores acervos privados do tipo no mundo, com mais de 50 000 documentos. Virá a São Paulo uma seleção de 180 itens, divididos por temas como música, literatura, arte e história.
“É uma amostra que cobre bem os acontecimentos dos últimos 500 anos”, diz Pedro, que levou a mesma exposição a Nova York em 2018, no Morgan Library & Museum — os móveis feitos sob medida para aquela temporada serão usados na mostra do Sesc, que vai de 28 de setembro a 15 de janeiro do ano que vem.
As personalidades que assinaram esses papéis formam uma inacreditável enciclopédia de notáveis. A mostra tem raridades como “rabiscos” de Napoleão Bonaparte, um artigo manuscrito de Simone de Beauvoir, a partitura de Chega de Saudade, de Tom Jobim, fotos autografadas pelos quatro Beatles, um pergaminho de 1153 assinado por quatro papas, um autógrafo bêbado do compositor Ludwig van Beethoven (em um recibo), uma lista de munições feita por Tiradentes, uma carta de Sigmund Freud a um psicanalista brasileiro na qual afirma que quer aprender português e dezenas de outras preciosidades.
“Nunca me contento em ter apenas uma peça de cada pessoa. De Albert Einstein e Pablo Picasso, por exemplo, tenho mais de dez documentos de cada”, conta o colecionador. Filho do diplomata Antonio Corrêa do Lago e neto do advogado, diplomata e político Oswaldo Aranha, Pedro passou a infância em países como a Suíça, a Bélgica e a Itália. Deu início ao acervo naqueles tempos.
“Meu pai tinha um livro com os endereços e biografias das pessoas mais famosas do mundo. Aos 12 anos, descobri que era possível escrever para essas personalidades. Passei a fazê-lo — e às vezes elas respondiam”, relembra. O jovem usava a mesada para garantir as primeiras peças. “Desde então, nunca parei de garimpar em leilões e livrarias”, conta.
Os valores dos documentos são um tabu entre os entusiastas do ramo — mesmo os especialistas, normalmente agentes desse mercado, evitam os números exatos. “O preço dos manuscritos depende de quem assinou, do conteúdo, da época e da especificidade do tema. Alguns ultrapassam os milhões de reais”, explica Márcio Molfi, proprietário do escritório de arte e antiguidades VM.
“O número de peças disponíveis faz muita diferença. Em certos casos, nem todas estão à venda, o que torna o item mais disputado”, completa a leiloeira Mariana Sodré Santoro Batochio.
Na coleção de Pedro, uma das aquisições mais valiosas é o conto A Biblioteca de Babel manuscrito pelo argentino Jorge Luis Borges, parte da mostra no Sesc. “Tive de pagar em quatro anos. Foi o valor de um pequeno apartamento”, diz. “Às vezes me aborreço porque o Pedro gasta mais do que pode nisso. Mas é uma paixão que acho linda de ver”, comenta Bia.
Como todo bom “garimpeiro”, Pedro também costuma ser atingido por golpes da sorte. “Uma vez, comprei um lote de 300 peças que tinha, por engano, um desenho de Michelangelo. As casas de leilão têm obrigação de olhar o material com cuidado, mas podem cometer erros. Ganhei o item de graça”, conta.
Formado em economia pela PUC-RJ, onde estudou ao lado de Gustavo Franco e Armínio Fraga, Pedro ingressou oficialmente nas artes ao abrir uma livraria de obras antigas em São Paulo, a Livraria Corrêa do Lago, no Jardim Europa, em 1987. Mais tarde, tornou-se representante da casa de leilões Sotheby’s. “Passei a ganhar a vida no mercado de artes, comprando e vendendo quadros”, ele conta.
Além de cultivarem juntos a coleção de documentos raros, Pedro e Bia também estão à frente da Editora Capivara. Publicaram conjuntamente dezenas de livros sobre documentos históricos — como uma fotobiografia de Marcel Proust, autor favorito do colecionador, que será lançada em 20 de outubro em Paris.
Prevista para ser inaugurada às vésperas das eleições, a mostra também será um banquete para aficionados por política. O acervo tem itens como cartas de Juscelino Kubitschek a Tancredo Neves na qual discutem trocas de favores, um documento de Fidel Castro e até uma fotografia assinada pelo imperador Hirohito — em japonês, é claro.
Alguns revelam momentos singelos dos líderes mundiais, como uma carta do futuro rei George VI em busca do primeiro pônei para a filha de 3 anos, que se tornaria a rainha Elizabeth II, falecida no dia 8. “É instigante poder chegar perto desse material que pertenceu a reis, papas e políticos… Uma pessoa pode passar uma vida concentrada nesses documentos”, diz Bia.
Para Pedro, o maior prazer do colecionador é mergulhar na alma dessas personalidades. “É o contato mais direto possível com alguém que morreu antes de você nascer. Minha casa é minha ‘Disneylândia’. Tem horas que mergulho na Idade Média, com documentos de 900 anos. Em outras, vou a Paris de Toulouse-Lautrec. Ou vejo de perto a intimidade da marquesa de Santos com dom Pedro I, nas quarenta cartas de amor do casal.”
As correspondências amorosas são uma categoria à parte na coletânea. Entre os destaques, recados carinhosos de Fernando Pessoa para a namorada Ofélia Queiroz e mensagens intensas escritas por Jean-Paul Sartre para uma de suas amantes. “Algumas são inocentes. Outras, francamente carnais”, diz Pedro.
O casamento entre Pedro e Bia, por sinal, envolveu uma carta — e uma dose de romantismo. “Nos encontramos em Paris e me apaixonei perdidamente. Mas ela era difícil”, diverte-se o colecionador.
Após viajar a Budapeste, ele decidiu enviar flores e um recado. “Ela detestou, pensou que eu tinha confundido a amizade. Mas, conforme os dias passavam e as flores continuavam vivas, começou a pensar ‘por que não?’”, relembra.
Armazenados em arquivos à prova de fogo que pesam até 500 quilos, os documentos ficam na casa do casal, no Leblon. “Supostamente, eles aguentam 1 000 graus de temperatura por uma hora sem afetar os papéis”, diz. Em breve, o casal vai transferir o acervo para uma nova casa na região da Gávea, feita pela arquiteta Lia Siqueira.
“Terá uma biblioteca para 15 000 livros e um elevador para levar os documentos a um andar onde ficarão bem conservados”, diz Pedro, que ainda sente falta de dois nomes na coleção. “Martinho Lutero, pela importância na história das ideias. E um impossível: Leonardo da Vinci. A última coisa no mercado foi um caderno vendido ao Bill Gates por 30 milhões de dólares”.
O colecionador acredita que a exposição, apesar do tom sépia, vai atrair os mais jovens — uma geração que levou autógrafos à semiextinção, após o surgimento das selfies com famosos. Seria um encontro, no mínimo, divertido. “Uma vez, um sobrinho de 6 anos me perguntou: ‘Tio, o que é uma carta?’”
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Publicado em VEJA São Paulo de 28 de setembro de 2022, edição nº 2808