“Virei a musa do combate ao etarismo”, diz Astrid Fontenelle
A jornalista e apresentadora acaba de estrear Admiráveis Conselheiras, no canal GNT, no qual entrevista personalidades femininas 60+
Foi um susto. Depois de onze anos no comando do programa Saia Justa, no canal pago GNT, a jornalista e apresentadora Astrid Fontenelle, uma carioca radicada em São Paulo desde a adolescência, foi dispensada em dezembro do ano passado. Ao mesmo tempo, ela recebeu o convite do próprio GNT para fazer um programa autoral, o Admiráveis Conselheiras, que acaba de estrear e tem convidadas como a jornalista Marília Gabriela, a atriz Zezé Motta e as escritoras Maria Adelaide Amaral e Conceição Evaristo, além de outras mulheres formidáveis.
Um dínamo, Astrid dedica-se a outros projetos, como a gravação de mais uma temporada de Chegadas e Partidas, e fala sobre vários temas, entre eles como é ter, aos 63 anos, um filho adolescente preto e como enfrenta problemas como o racismo. Confira na entrevista a seguir.
O que sentiu ao deixar o Saia Justa?
Estava ali há onze anos, não esperava por aquilo. Acho que qualquer pessoa consegue se identificar comigo. Você está num trabalho X, Y, Z e recebe um comunicado de que vão descontinuar o seu trabalho. Foi o que aconteceu comigo. Eu tinha vindo de uma avaliação muito positiva sobre a minha performance. E aí você fala “tudo bem”, porque também na mesma conversa recebi uma proposta para criar um novo programa. Graças a Deus, isso aconteceu comigo com 60 e tantos anos. Tive a maturidade de me recolher, de terminar o meu contrato. Tive mais umas quatro, cinco semanas pra frente de trabalho, e ninguém sabia.
Nem suas colegas?
Muito menos elas. Só a direção do canal sabia. Depois de duas semanas, contaram para a direção do Saia Justa, porque precisavam criar o programa de despedida. Foram tão carinhosas comigo. E eu falo no feminino porque é uma equipe muito feminina. Foi um belíssimo programa. Durante esse período, a gente recebeu o Gilberto Gil. No final, falei para ele: “Muito, muito, muito obrigada. Se eu tivesse que encerrar agora minha jornada no Saia, estaria completamente realizada”. Foi uma pista que eu dei, mas ninguém captou. Quando terminou, passei 42 dias em Morro de São Paulo sem muita conexão, sem ficar “psicopata” de celular, de WhatsApp, de alimentar fofoca. Quando voltei, estava a mil para criar um novo programa, que deu muito certo.
De onde veio o input para Admiráveis Conselheiras?
O canal naquela tal conversa falou: “A gente quer que você crie um programa autoral. Existe um podcast chamado Wiser Than Me (Mais sábias do que eu, em tradução livre), você já viu?”. Respondi: “Não”. Aliás, ainda não vi, porque o Saia me tomava muito tempo. Eram três pautas diferentes por semana, e chegava uma pesquisa pra gente de trinta páginas mais ou menos, fora o que eu tinha que pesquisar, o que eu tinha que saber do mundo. Mas sabia que era um podcast de entrevistas com mulheres mais velhas.
A temporada tem dez episódios. Como escolheu as participantes?
A gente fez uma lista de quarenta nomes. É uma grande matemática, porque tem que mesclar por idade, uma faixa de 60 a 90 anos. Queria e quero muito dona Fernanda Montenegro, era o número 1, mas a agenda dela, de 95, estava tomada até dezembro e eu ia gravar em junho. São mulheres que não têm vergonha de assumir sua idade. Me coloco à disposição no combate ao etarismo. Virei a musa desse combate e faço questão de levantar essa bandeira.
Como foi convidar Marília Gabriela, que está no episódio de estreia?
Neste programa, chamei para mim uma responsabilidade que eu nunca tive: ser a pessoa que liga e faz o convite. Sempre é a produção que liga. Mandei uma mensagem de texto por WhatsApp para a Gabi. Ela respondeu: “Ai, não sei, vou estrear (no teatro), estou muito atarefada, fala com a Belarmina”, secretária, que respondeu: “Astrid, sinto muito, mas ela não quer fazer. Ela já se aposentou, nunca dá entrevistas, tanto que a peça chama A Última Entrevista de Marília Gabriela”. Sou de respeitar hierarquias, mas mandei um áudio para a Gabi dizendo “que não existia a menor possibilidade de eu estrear sem ter a pessoa que durante a vida chamei de professora”. Ela aceitou, só não deixou gravar na casa dela. Quando terminei, tinha certeza de que era o programa de estreia.
Você está gravando Chegadas e Partidas. Qual o segredo para descobrir histórias tão boas?
A gente chega ao aeroporto e monta o nosso cantinho, discreto, e saem dois produtores perguntando sobre as histórias. Às vezes, tá na cara. Está ali uma família grudadinha, chorando e tal. É muito o nosso olhar. Tem entrevistado que diz: “Minha história não é interessante”. Não é interessante porque ninguém quis ouvi-la com a vontade que eu tenho.
Como é a vida aos 63 anos?
Estou muito bem, obrigada. Tenho uma condição de saúde que me deteriora, mas tenho excelentes médicos para controlar isso. Mas não finjo que não vejo os sinais que o corpo me dá. Um dos meus médicos que diagnosticou o lúpus contou uma história de consultório. Um cara perguntou “Doutor, como é que eu faço para viver até os 100 anos?”. A resposta foi: “Arruma uma doença crônica que você vai longe, porque a gente cuida”. Tem que ficar monitorando o tempo todo. É apenas o cuidado que todo mundo deveria ter e fica adiando.
Há quanto tempo vive com o lúpus?
Acho que o Gabriel tinha uns 2 anos. Faz uns treze, catorze. O lúpus está em remissão há muito tempo.
Como é ter um filho adolescente de 16 anos? Quais as maiores preocupações e as maiores alegrias com ele?
Como eu sempre trabalhei antecipando tendências, sempre trabalhei o Gabriel antecipando maturidade. Conversávamos sobre a primeira paixão, a descoberta do sexo. Sempre encaminhei para isso ser legal e para a gente estar juntos nessa travessia. As minhas preocupações são as de qualquer mãe: drogas, bebidas, vape, que é uma tragédia. Mas tenho um diálogo muito legal com ele, com os amigos dele. Tenho um filho preto. Fico de olho em atitudes racistas.
Sente o racismo o tempo todo ou sua condição social afasta um pouco?
Jamais. Pensei que afastaria até, mas jamais. O racismo é tão cruel e está tão enraizado na sociedade que acontece em qualquer lugar. São os olhares verbalizando. Tive dois episódios assim. Um foi na Bahia, em Morro de São Paulo. Uma mulher olhou para o Gabriel e falou: “Menino, pega ali uma cadeira pra mim”. Aí, saquei que ela estava confundindo ele com funcionários de hotel, porque ele é muito alto. Mas era um menino nesse momento, um menino de 12 anos, e ela era uma mulher branca, toda metida. Dei um esculacho nela, expulsei ela da praia. E teve um episódio na escola. Uma criança chamando ele de “pretinho”, “pretinho”. Acho que a adoção do Gabriel vem num pacote dele ser o menino preto nordestino. Vem num pacote que me põe em estado de alerta e de necessidade de muita conversa com ele.
Publicado em VEJA São Paulo de 1º de novembro de 2024, edição nº 2917