Doce afeto
Na cozinha do Alle Beccherie, a cerca de 40 quilômetros ao norte de Veneza, surgiu um dos doces italianos mais pedidos no mundo: o tiramisu. O original é servido em formato redondo
Quando abriu as portas para a Praça Giannino Ancilotto, no começo de 1800, o Alle Beccherie funcionava como abatedouro e hospedaria para negociantes de carne de boi e de cavalo no ponto central de Treviso — a cerca de 40 quilômetros ao norte de Veneza. Da cozinha deste que é hoje o restaurante mais antigo da cidade, localizado na vizinhança cercada por muros de mais de 500 anos, saíam pratos para reabastecer as energias dos negociantes. Entre eles, os savoiardi, delicadas bolachas medievais batizadas com o sobrenome da família real italiana Savoia e conhecidas no Brasil como “biscoitos champanhe”. Os savoiardi são a alma de um doce formidável, o tiramisu, apreciado mundialmente. A hipótese mais provável é que tenha surgido na cozinha do Alle Beccherie.
Embora a receita original possa ter nascido nessa antiga casa, a composição que leva ovos, café, chocolate, açúcar e queijo não é centenária. Pelo contrário. Para chegar à fórmula definitiva, a proprietária do restaurante, Alba Campeol, e seu confeiteiro, Roberto Linguanotto, começaram atestar misturas no fim dos anos 1960. A Academia Italiana de Culinária registrou oficialmente o tiramisu em 1972, a partir dos experimentos. Antes dessa data, garante Teresa Perissinotto, diretora do escritório local da entidade, não há rastros de nada parecido com a receita. O desejo de Alba e Linguanotto era criar uma sobremesa que unisse ingredientes caseiros ao velho costume local de levantar o ânimo de quem precisa com sugestões energéticas. Entre os habitantes de Treviso, é praxe servir algo calórico no meio da manhã e no meio da tarde a crianças, mães em amamentação, idosos e convalescentes. “Quando acabava de amamentar, minha sogra aparecia no quarto com um biscoito embebido no café, uma xícara de chocolate e um pedaço dequeijo para eu comer”, diz Alba, hoje com 81 anos e dona do Beccherie desde 1939. “Aprendi assim que a comida é uma demonstração de afeto. Por isso, digo que o tiramisu nasceu de uma boa dose de carinho.”
Aos 59 anos, Linguanotto atua como confeiteiro independente. Para chegar à receita final, Alba pensou no biscoito embebido no café, no chocolate servido nos tais lanchinhos, e juntou-os a outros hábitos — entre eles, o de comer panetone com uma camada de mascarpone, a versão trevisana do pão com manteiga. Veio daí a ideia de um pavê. Para que não ficasse limitado ao Natal, o panetone foi substituído por pão de ló. A massa, no entanto, absorvia café demais. Por fim, Alba optou pelos savoiardi. Numa tentativa de entremear as camadas com algo cremoso, testou o chantili, mas o excesso de gordura, segundo ela, “deixava o doce pesado”. Em seguida, experimentou o mascarpone, sem sucesso. A solução veio da tradição: misturar o queijo ao el sbàtudìn, uma espécie de gemada com menos açúcar, também típica de Treviso. Assim surgiu o doce, chamado inicialmente de tiramesù, que em tradução livre significa “erga-me, dê-me energia”.
Hoje, existem variações em muitos restaurantes, inclusive os estrelados. Há chefs que incluem licor, misturam zabaione (creme de gemas, açúcar e vinho Marsala) ao queijo e servem em copinhos. Mas a versão original é redonda e vendida em fatias bem macias. Encontra-se entre as atrações do Alle Beccherie, que integra o circuito dos restaurantes históricos da Itália (e está entre os recomendados pelo chef americano Mario Batali, personalidade midiática e dono do Del Posto, quatro-estrelas pelo diário The New York Times). Alba não se importa com as interpretações. Confessa que o tiramisu “do dia seguinte” é mais saboroso, e o grande segredo é molhar os biscoitos num café do tipo “tinta”. Cozinhar, como ela ensina, é um ato de afeto. Não de polêmica.