“A questão racial é a grande contradição da sociedade”, diz Lilia Schwarcz
Eleita nova imortal da Academia Brasileira de Letras, historiadora e antropóloga assina duas mostras de arte em São Paulo e prepara livro inédito
Além de ser professora na USP e em Princeton, nos Estados Unidos, Lilia Moritz Schwarcz, 66, também “dá aula” na internet. Sucesso nas redes sociais, suas publicações diretas e didáticas sobre história e política conquistam públicos cada vez mais diversos — justamente um dos seus objetivos como historiadora e antropóloga.
Eleita para a cadeira 9 da Academia Brasileira de Letras no início deste mês, ela é a 11ª mulher a ingressar no hall de imortais da entidade desde sua fundação, em 1897, e a quinta na atual composição. O marco coincide com a abertura de duas mostras sob sua curadoria em São Paulo: Direito à Memória, na Casa Zalszupin, uma homenagem a artistas invisibilizados; e Leituras, feita com o artista Thiago Honório, na Biblioteca Mário de Andrade a partir de sábado (23).
Na entrevista a seguir, Lilia relembra como conheceu seu marido, o editor e escritor Luiz Schwarcz, conta por que só posta no Instagram e antecipa qual será o tema do seu próximo livro.
Como foi o processo criativo para a nova mostra na Casa Zalszupin?
Já visitei muitas vezes a casa (no Jardim Europa), um ícone da arquitetura modernista, então pensei em algo que dialogasse com o projeto e decoração originais. A força dessa exposição está no seu caráter coletivo. Fiz uma homenagem sobretudo a artistas indígenas e de raízes afro-brasileiras.
Como reagiu ao saber que foi escolhida para uma das cadeiras da ABL?
Em primeiro lugar, como uma homenagem ao antigo titular da cadeira 9, uma espécie de pai intelectual e afetivo para mim: o doutor Alberto da Costa e Silva. E com emoção, porque as mulheres só começaram a entrar na Academia em 1976. É muito importante que as mulheres tenham protagonismo correspondente à presença intelectual e populacional. A ABL é uma casa de memória e é importante que a gente entre nesses espaços.
Quais pautas deseja levar à Academia?
Vou seguir uma tradição de historiadores e pretendo incluir pautas da diversidade, as questões feministas e das populações negras e indígenas. Mas só fui eleita, ainda não fui empossada. É preciso ter a humildade de quem ainda está nesse limbo (risos).
Em 2017, você participou da série Era uma Vez uma História, da Band. Tem vontade de retornar à TV?
Tenho sempre essa tentativa de divulgar boa informação e a preocupação de adquirir novos públicos, mostrar como a história é um vocabulário fundamental. Mas não tenho planos para a televisão.
Em quais livros e projetos está trabalhando no momento?
Vou publicar um livro que se chama Imagens da Branquitude: A Presença da Ausência (previsto para ser lançado entre junho e agosto pela Companhia das Letras). É uma discussão sobre como se constrói esse lugar de privilégio. E também abro a exposição Leituras com o artista Thiago Honório. Thiago é um artista contemporâneo e conceitual que faz releituras da obra do Mário de Andrade. Sairia no ano passado, mas foi adiada, de forma que agora estarei com duas exposições em São Paulo ao mesmo tempo.
“Toda vez que me perguntam: ‘Professora, você tem uma opinião?’, sempre falo: ‘Posso te dar uma informação?’ ”
Como divide sua rotina em São Paulo?
Quando não estou dando aula, estou pesquisando ou divido um pouco do meu lazer: corro, sou louca por cinema, por rock e música clássica. Sou uma paulistana bastante orgulhosa da cidade. Gosto do Centro. É um Centro tão destruído e desqualificado, mas que conta tantas histórias. Precisava ser urgentemente requalificado para que as pessoas pudessem novamente passear por lá e aproveitar os equipamentos públicos, como o Theatro Municipal e a Sala São Paulo. São joias da cultura paulistana.
Como a sua família influenciou a sua trajetória?
Tenho pais leitores e tive, tanto do lado francês como do italiano, dois avós historiadores não profissionais, que, ao se mudarem para o Brasil por causa da guerra, trouxeram seus livros. Então herdei um pouco a biblioteca deles e tenho essa veia da história e da memória muito marcadas pela família.
E como conheceu seu marido?
Brinco que nasci casada. Conheci aos 12 anos, numa colônia de férias, mas naquela época ele tinha 14, muito mais velho que eu. Eu o reencontrei no que chamávamos de segundo grau e desde então estamos juntos. Nessa nossa longa vida, nos reinventamos muitas vezes com a capacidade do diálogo. Luiz é uma pessoa da escuta, do diálogo e do afeto ao mesmo tempo.
Como foi sua experiência ao entrar na USP, nos anos 1980?
Eu pensava em mudar para ciências sociais, mas gostei tanto da faculdade de história que continuei. Acho que já fiz todas as etapas da carreira da USP: uma graduação, o mestrado, o doutorado e continuo por lá firme e forte. Brinco que já faço parte dos “móveis e utensílios” da instituição (risos).
Como você começou a se envolver com a questão racial e a história do Brasil?
Essa questão me tomou desde a época da graduação. A questão racial é a grande contradição da sociedade brasileira, o grande nó da nossa sociabilidade. E, por ser a nossa contradição, afeta as pessoas negras mas também as brancas. Ela não só condiciona lugares de subordinação como também lugares de mérito e privilégio como se fossem naturais e universais. Comecei pesquisando esse tema e agora me volto mais a pesquisar meu próprio lugar de fala, o lugar da branquitude, que faz com que as pessoas brancas achem que quem tem raça são só os outros.
Você sempre responde ativamente a seus seguidores nas redes sociais. Tem ajuda para cuidar da página?
Entrei muito sem querer: escrevi um post contra um ministro do governo Jair Bolsonaro, recebi muitos comentários e, capricorniana que sou, falei: “Vou responder a todos”. Mas nem sabia que minha resposta era pública até que minha filha falou: “Mãe, você está mandando bem”. Depois que descobri, fiz amigos por lá. E não demonizo as redes. Por elas, é possível sentir mais da opinião pública. Muitas vezes não consigo responder a tudo. O tempo é limitado porque eu mesma escrevo, respondo e reajo a tudo. Toda vez que me perguntam: “Professora, você tem uma opinião?”, sempre falo: “Posso te dar uma informação?”.
E já passou por alguma situação inusitada no mundo virtual?
Comecei a entrar no Facebook na época em que a artista Adriana Varejão teve uma crítica tremenda pela exposição Queermuseu no Rio Grande do Sul. Como sou estudiosa da obra dela, fui explicar o que eram os shungas (tradicional arte erótica do Japão, comum entre os séculos XVII e XIX) e o Facebook me censurou. Nunca mais consegui entrar direito e acabei ficando só pelo Instagram (risos).
Publicado em VEJA São Paulo de 22 de março de 2024, edição nº 2885