Memória: Lina Levi (1927-2018), a criadora da Casa Búlgara
Aberta em 1975 pela imigrante judaica, a pequena e premiada delicatessen especializada em burekas, no Bom Retiro, será comandada pela filha da fundadora
Desde a manhã de 20 de dezembro, o Bom Retiro está mais triste e menos saboroso. Essa é a data da morte de Lina Levi, ou apenas dona Lina, fundadora da Casa Búlgara. Aos 91 anos, a cozinheira de origem judaica que tornou as burekas famosas em São Paulo, perdeu a última batalha para um câncer diagnosticado 15 meses antes depois de passar por uma cirurgia.
“Estava lúcida até a um dia antes de falecer, embora tenha passado 14 dias na UTI. Vou tentar seguir o pedido dela, continuar a tradição que ela iniciou”, diz Shoshana Baruch, que trabalhava com a mãe há mais de três décadas.
Conheci dona Lina logo que comecei a escrever sobre gastronomia. Já são quase trinta anos. Nesse período, existe uma passagem especial com ela. A convite de Maria Cristina Poli que apresentava o ótimo programa Circular, na TV Bandeirantes, fiz um muito particular para roteiro de ônibus que passeava pela cidade. Apresentava judeus do Bom Retiro e árabes do Brás, para mostrar o quanto essa convivência era saborosa e pacífica em São Paulo. O primeiro lugar escolhido era justamente a Casa Búlgara e fui recebido pela matriarca.
Ela chegou ao Brasil em novembro de 1974 e se fixou no Bom Retiro, bairro que por anos concentrou a colônia judaica da capital — hoje, aquele pedaço da cidade é mais conhecido pela presença de coreanos. A matriarca desembarcou por aqui na companhia do marido e dois de seus três filhos. Receberia ainda a mãe no ano seguinte. Vinha de Israel para escapar dos efeitos da Guerra do Yom Kippur.
Antes de se fixar em São Paulo, a búlgara nascida na cidade litorânea de Varna, de onde sua família saiu em 1947, tinha um destino diferente. Embora os judeus da Bulgária não tenham sido afetados pela Segunda Guerra Mundial, ela ia com os pais para o território onde surgiu Israel e que seria criado oficialmente como estado em 1948.
No caminho, o navio em que estavam foi detido por ingleses e seus passageiros enviados para Chipre. Lina precisou contornar mais essa dificuldade para seguir viagem.
Um ano depois da chegada a São Paulo, ela abriu a Casa Búlgara. Em 1 de dezembro de 1975 a lanchonete e confeitaria subiu as portas pela primeira vez e começou a atender os clientes. Embora tenha vindo de Israel só em 1987 para ajudar a dona Lina, Shoshana descreve o motivo que levou a mãe para preparar burekas.
“No começo, minha mãe oferecia só sorvete, iogurte e queijo búlgaro. Mas logo, ela começou fazer burekas para poder sobreviver porque não dava só com esses produtos”, conta.
Foi necessário adaptar a receita da massa porque a farinha, a água e a gordura são diferentes das da Bulgária. “Também não havia queijo búlgaro” descreve Shoshana. “Demorou para as pessoas aprenderem o que era a bureka. Foi no boca a boca que a pessoas descobriram que era um folhado caseiro.”
As primeiras fornadas eram preparadas apenas com recheios de queijo búlgaro ou espinafre com queijo. “São as tradicionais. Depois foram adicionadas batatas a pedido dos judeus do Leste Europeu que eram maioria no bairro naquela época. E ainda a de carne que nós fazíamos também em casa”.
A receita, cuja origem é turca e se espalhou pelos países dominados pelo antigo Império Otomano, Lina aprendeu com a avó e com a mãe, que veio com ela para o Brasil na década de 1970. Na Bulgária, essa massa filo ganhou características próprias como os recheios e o nome de byurek ou бюрек, em cirílico.
As burekas se tornaram um sucesso e foram inclusive premiadas por VEJA SÃO PAULO COMER & BEBER em 2009 na categoria melhor salgado. Com o passar do tempo, a massa folhada ganhou mais recheios, como frango, cogumelo-de-paris, berinjela com queijo búlgaro e gorgonzola. Até uma versão doce, feita com chocolate meio amargo, apareceu para satisfazer os fãs de sobremesa.
Até ser internada três semanas antes de partir, Lina deu expediente normal. Não tirava o olho da cozinha e continuava firme no atendimento, assim como não se descuidava do caixa e da administração. Shoshana garante que vai se empenhar para manter a tradição iniciada por sua mãe. “Fazemos tudo lá de maneira artesanal. E vai continuar assim enquanto eu estiver lá.”
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