Embriagado por uma cigana deliciosamente má
Talvez o mais intenso tipo de embriaguez seja a embriaguez amorosa. Dessas que começam com pequena dose e tragam completamente os amantes em um sorver voraz da paixão. Bem, do que estou falando eu em um blog de gastronomia? De Carmen, ópera um sucesso mundial desde o século XIX, pouco depois da estreia em Paris […]
Talvez o mais intenso tipo de embriaguez seja a embriaguez amorosa. Dessas que começam com pequena dose e tragam completamente os amantes em um sorver voraz da paixão. Bem, do que estou falando eu em um blog de gastronomia? De Carmen, ópera um sucesso mundial desde o século XIX, pouco depois da estreia em Paris em 1875. A composição de Georges Bizet está em cartaz no palco do Municipal até o dia 11 de junho (confira aqui).
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A protagonista, uma cigana cheia de ardis e encantos, seduz um cabo do exercito real. Ele a ajuda a fugir quando é presa depois de ter cortado o rosto de uma colega na Fábrica Real de Tabaco, onde as duas trabalham. Com sua voz magnética, ela oferece ao oficial uma dança e um copo de bebida. Não é preciso mais nada para ele ficar caído por ela. Mais tarde na taberna de Lillas Pastia, tomam manzanilla e comem laranjas. Ébrio de amor e não pelo tradicional vinho branco oxidado, joia líquida do sul da Espanha prima do famoso jerez, don José cede aos caprichos da amante, deserta e torna-se bandoleiro. Depois de um breve momento de felicidade, seguem-se os desencontros até o fim de alta voltagem dramática. Caminham para um aniquilamento total.
Não é a primeira vez que toco nesse assunto aqui. Não será a última. Além da boa mesa, é impossível esconder minha predileção por música clássica, em especial pelo gênero musical. Tanto que já escrevi sobre outra montagem de Carmen, levada no Teatro São Pedro com a meio-soprano Luciana Bueno.
Assisti a quase uma dezena de versões de Carmen, a pior delas em Paris, levada anos atrás na Bastilha. Mesmo quando a encenação é ruim como essa a que me referi, sempre me impressiono como o plateia se deixa contagiar pela música. Entendo o efeito avassalador. A composição de Bizet para essa história de antagonismos amorosos é tão envolvente, de um calor vibrante que nos conduz a Sevilha, cenário da trama.
A montagem do Municipal é a melhor que já vi. Infelizmente, os ingressos estão esgotados. O que se desenrola no palco é um espetáculo com direção segura do italiano Filippo Tonon, assistente na Arena de Verona. Completa-se com um belo cenário em tons terrosos do espanhol Juan Guillermo Nova, valorizado pela iluminação preciosa do paulistano Caetano Vilela. De maior impacto visual, o terceiro ato, em especial, me fez lembrar obras da fase negra de Goya. Uma sequência de belos quadros vão desfilando diante dos olhos emoldurando o acampamento dos ciganos na montanha.
Claro que nada disso adiantaria se não houvesse grandes interpretações. Carmen exige não só cantores, mas atores seguros em cena. Na linhagem da opéra comique, tem diálogos que acentuam a necessidade de atuar. Assisti aos dois elencos e dupla formada pelos cariocas Luisa Francesconi e Fernando Portari (que não se verá mais em cena) brilhou. Portari mostrou todas a hesitações do herói/anti-herói. Conhece os limites do que seria certo, mas quer se consumir por uma união com prazo de validade de não mais de seis meses, como todos que conhecem Carmem o alertam. Francesconi, sensual de voz e corpo, torna o palco do Municipal pequeno com sua presença. Com graves formidáveis, dá as cartas — inclusive lê neles seu fim trágico –, domina o fraco don José e arrebata o público. Um brinde a ela!
Embora a outra Carmen, vivida pela isralense Rinat Shaham, seja um vulcão em cena, o jovem Thiago Arancam, tenor paulistano que vem fazendo bela carreira no exterior, tem limitados dotes de ator. Nem a bela voz redime seu don José quase canastrão. Na noite em que assisti à montagem, a plateia pareceu não se importar com isso pela intensidade de aplausos. O público foi embalado pela segura condução do maestro Ramón Tebar, pelo ótimo Coral Lírico e pela exuberante Shaham. Era impossível sair do teatro sem cantarolar.
Como Carmen se despede (tomara que esta montagem entre para o repertório do Municipal e seja reencenada em breve), agora, é ir atrás de uma garrafa de manzanilla e assistir algumas ótimas montagens em vídeo. Sugiro duas levadas no Covent Garden de Londres, a mais antiga delas de 1991 protagonizada pela americana Maria Ewing e pelo argentino Luis Lima (assista o trecho final aqui), e a mais recente com italiana Anna Caterina Antonacci e pelo alemão Jonas Kaufmann em 2008. Também vale curtir a gravação com Teresa Berganza e Placido Domingo de 1980 pela Opera Nacional de Paris (clique para ver a Habanera).
Também seria bacana se o Municipal disponibilizasse o libreto em versão digital. Nele há dois ótimos textos, um de Irineu Franco Perpétuo e outro de Arthur Dapieve. Vale a pena ler esses artigos na companhia de um copo de fino. Que venham mais Carmens!
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