Desde sua fundação, em 1911, o Teatro Municipal brilha como um solista na Praça Ramos de Azevedo, no centro da capital. Seu figurino é o de um ícone arquitetônico eclético do século XX, que mistura estilos europeus como barroco e art nouveau; sua voz, a de personagens como a cigana Carmen ou o cavaleiro Lohengrin, das óperas de Georges Bizet e Richard Wagner. O enredo glorioso, porém, tem descambado para um dramalhão — não no palco, mas nas coxias.
Não bastassem as brigas e o clima pesado de bastidores (um ato à parte nessa história), o Municipal é cenário de graves denúncias de corrupção, em uma trama que envolve um rombo de 20 milhões de reais na contabilidade do teatro, notas fiscais superfaturadas, contratos de fachada e desvio de dinheiro público. O mais recente capítulo: no último dia 26, a prefeitura pôs a instituição sob intervenção por noventa dias.
![John Neschling e Haddad](https://vejasp.abril.com.br/wp-content/uploads/2017/01/john-neschling-e-haddad.jpeg?quality=70&strip=info&w=650)
Sai do poder, portanto, o Instituto Brasileiro de Gestão Cultural (IBGC), organização social comandada por William Nacked, designada pela prefeitura para dar autonomia financeira e administrativa ao teatro e que podia, por exemplo, realizar contratos sem a exigência de licitações. Cabia ao órgão pagar salários, elencar serviços e escolher as apresentações, sempre com a anuência do então diretor-geral da casa, José Luiz Herencia (atribuições que, na fase atual, ficaram a cargo do interventor Paulo Dallari, funcionário da prefeitura).
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Fecha a tríade do comando do prédio, na função de diretor artístico, o maestro John Neschling, responsável pelas encenações, da contratação de bailarinos à regência da Orquestra Sinfônica Municipal. Apesar de estar sendo investigado, não pairam indícios contra ele, ao contrário do que acontece com Nacked e Herencia, os principais nomes nas apurações conduzidas pela Controladoria-Geral do Município e pelo Ministério Público de São Paulo.
As mudanças promovidas pela gestão empossada há três anos resultaram na alta da qualidade da programação. O número de sócios-assinantes (anuidade entre 100 e 640 reais) dobrou de 3 000 para 6 000, e o público cresceu de 61 000 visitantes, em 2012, para 101 000 no ano passado. Em setembro de 2015, porém, algo de estranho começou a acontecer. Atrações importantes anunciadas para este ano, como a ópera Così fan Tutte, de Mozart, e o concerto La Fura dels Baus, foram cancelados sob a alegação de falta de verba.
A relação entre os cabeças da diretoria técnica e artística, até então cordial, azedou. Amigo de Haddad, com bom trânsito na prefeitura, Neschling queixou-se do diretor-geral ao prefeito, que pediu à controladoria-geral uma auditoria nas contas do teatro, em outubro. Em paralelo, o Ministério Público, movido por uma denúncia do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), havia detectado a existência de “movimentações bancárias suspeitas” de José Luiz Herencia. Em poucas semanas, as apurações se cruzaram.
![Patricia Melo e Jerencia](https://vejasp.abril.com.br/wp-content/uploads/2017/01/patricia-melo-e-jerencia.jpeg?quality=70&strip=info&w=650)
A suspeita dos investigadores é que Herencia use a mãe e a ex-mulher como laranjas. Ele possui procuração para movimentar as contas-correntes de ambas, o que chamou atenção. Nos últimos dois anos, elas adquiriram um apartamento de 6 milhões de reais na Rua Minas Gerais, em Higienópolis (a poucas quadras do apartamento onde vive Neschling), e três terrenos em Ilhabela, no litoral norte. O salário dele, de 19 000 reais, seria incompatível com as aquisições.
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O diretor-geral também recebia, em contas bancárias no nome das duas, depósitos de produtoras culturais que prestavam serviços para o Municipal. “Em alguns casos, eles não se concretizaram, pois o CNPJ era de uma empresa- fantasma”, aponta o controlador Roberto Porto. Formado em filosofia pela USP, Herencia foi indicado ao cargo por Juca Ferreira, então secretário e atual ministro da Cultura. Ele foi seu assessor especial durante parte da administração do ex-presidente Lula. Também passou pela Secretaria Estadual da Cultura sob a gestão do então secretário Andrea Matarazzo.
Entre seus conhecidos, Herencia adora falar que também é artista — cita a publicação do livro de poemas Água Furtada, lançado em 2011, que vendeu 100 exemplares pela Azougue Editorial. Em novembro, ao tomar conhecimento do avanço da apuração contra ele, demitiu-se — e saiu levando o disco rígido do computador que usava no Municipal, contendo todas as suas informações de trabalho.
O item foi recuperado pela Justiça, que também sequestrou seus imóveis e bloqueou suas contas. Procurado, Herencia não quis comentar nenhuma das acusações: “Eu me limito a dizer que estou prestando depoimentos”. Na última semana, ele teve dois encontros no Ministério Público.
![Misael Santos](https://vejasp.abril.com.br/wp-content/uploads/2017/01/misael-santos.jpeg?quality=70&strip=info&w=650)
O outro capítulo das acusações é relacionado ao IBGC, a organização social que geria o teatro — e que, para isso, recebeu 106 milhões de reais da prefeitura só em 2015. “Havia uma total promiscuidade entre as contas do órgão e do Instituto Brasil Leitor (IBL), que também é dirigido pelo William Nacked”, diz o controlador-geral Roberto Porto. “Temos provas de que foram feitos empréstimos entre as organizações. A sede era a mesma e alguns empregados, compartilhados.” Em resumo, a desconfiança é que o dinheiro do teatro acabava no IBL.
Desde o último dia 26, com a intervenção, Nacked está afastado da administração. “O modelo de gestão por O.S. (organização social) veio para ficar. O legado vai ser deixado. Sobre corrupção não vou conversar. São acidentes de percurso. Se houve problemas de governança, a gente põe em dúvida o presidencialismo?”, declara.
Sobre John Neschling, há outros questionamentos. Chama a atenção do promotor Arthur Pinto de Lemos Júnior o fato de o maestro passar muitas temporadas no exterior, com trabalhos de regência para outras orquestras, sem se licenciar do cargo (e do salário mensal de 150 000 reais). “Meu contrato com o IBGC não exige tempo de permanência nem exclusividade. Cumpro meus compromissos, e ainda levo o nome do teatro para fora do país”, diz Neschling.
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O órgão também quer saber como se deu o pagamento, por parte do IBGC, de 300 000 euros (cerca de 1 milhão de reais) a uma produtora de Mônaco escolhida por Neschling para realizar o espetáculo Alma Brasileira, que retrataria a obra do compositor Villa-Lobos e, até hoje, não saiu do papel. “O convênio não foi adiante pelas mais diversas explicações. A responsabilidade é inteira do senhor Nacked”, responde Neschling. Para a promotoria, o maestro também pode ser responsabilizado. “Há muita subjetividade em uma contratação artística, são valores difíceis de avaliar e sabemos que alguns gestores se aproveitam disso para superfaturar”, diz Lemos Júnior.
![Jamil Maluf](https://vejasp.abril.com.br/wp-content/uploads/2017/01/jamil-maluf.jpeg?quality=70&strip=info&w=650)
Além disso, ronda o maestro uma bélica rede de intrigas pessoais, fruto de seu temperamento peculiar e intempestivo. Em novembro de 2014, o cantor lírico Misael Santos soltou o gogó para os promotores. Relatou a demissão de quinze músicos e um suposto favorecimento na contratação dos novos escolhidos. “Todos já tinham sido funcionários dele na Companhia Brasileira de Ópera”, aponta Santos, que chegou a tentar uma vaga no time, sem sucesso.
Neschling confirma que muitos contratados eram seus ex-funcionários. “Mas não houve favorecimento, as audições são gravadas e seguem padrão internacional. Trabalho com gente boa, seja onde for”, refuta. Nos bastidores, músicos se referem a Neschling como “grosseiro” e “arrogante”. Todos são proibidos de falar com a imprensa. “A tirania dele garante o nosso silêncio, temos medo da demissão”, diz um deles, sob anonimato.
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Contestar pode sair caro. Mario Zaccaro, ex-maestro do Coral Lírico, queixou-se do tratamento recebido durante os ensaios da ópera La Bohème e foi mandado embora. “Sou fã do trabalho dele, mas o clima era de terror.” Funcionário da casa desde 1980, Jamil Maluf foi desligado em 2014. “Eu me senti desrespeitado ao extremo porque não houve explicação”, lembra. “Cheguei a ser diretor artístico e não ganhei um centavo a mais por isso, além da minha remuneração de 10 000 reais como regente da Orquestra Experimental de Repertório.”
![Capa Teatro Municipal 2468](https://vejasp.abril.com.br/wp-content/uploads/2017/01/capa-2468-imagem.jpeg?quality=70&strip=info&w=650)
Contratado para ser diretor cênico da montagem de Otello em 2015, o italiano Giancarlo Del Monaco saiu brigado — e disparou para todos os lados. “Todo o teatro treme de medo diante de Neschling e Herencia. Aquilo não é um teatro, é uma prisão. A pessoa ainda mais temida é a mulher de Neschling (a escritora Patrícia Melo). É ela quem comanda o teatro”, afirmou Del Monaco em entrevista à Folha de S.Paulo.
Patrícia, que não tem nenhuma ligação formal com a instituição, é presença constante por ali, motivo pelo qual ganhou o apelido de “papagaio de pirata”. O cantor Misael Santos, que não trabalha no Municipal, mas foi convidado para assistir, em agosto do ano passado, a um ensaio da ópera Manon Lescaut, relata ingerência de Patrícia: “Eu a vi opinando sobre iluminação, cenário e implicando com todos no ambiente”.
Nos dias de estreia, artistas reclamam que ela se maquiava antes mesmo daqueles que entrariam em cena. É verdade, maestro? “Se minha mulher se maquia no meu camarim no dia da minha estreia, usando o próprio material, e se ela é amiga da maquiadora que passou para vê-la, é problema dela.” Inimigos também reclamam da presença constante de Schlomo, o yorkshire do casal, e relatam os mimos mais pitorescos ao cão, que o dono refuta: “Jamais um funcionário do teatro levou meu cachorro para passear”.
![Misael Santos](https://vejasp.abril.com.br/wp-content/uploads/2017/01/misael-santos.jpeg?quality=70&strip=info&w=650)
Fora dali, Patrícia e Neschling têm a simpatia do primeiro-casal da cidade. Dona de um sítio em São Francisco Xavier, ela hospedou, com o marido, em um fim de semana de julho do ano passado, o prefeito Fernando Haddad e a esposa, Ana Estela. Antes das denúncias, sua relação com o agora ex-amigo Herencia também era boa. Ainda no início da gestão, ele chamou o então diretor-geral ao palco e, diante dos músicos, disse que era um homem de sua “total confiança”.
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Na ocasião, contou que teria como objetivo contratar os artistas com carteira assinada, de acordo com o que a lei pedia. Isso foi feito — 246 integrantes da Orquestra Sinfônica Municipal, do Coro Lírico, do Coral Paulistano e do Quarteto de Cordas hoje trabalham de acordo com as regras da CLT. Ainda faltam os 32 funcionários do Balé da Cidade.
![opera la boheme](https://vejasp.abril.com.br/wp-content/uploads/2017/01/opera-la-boheme.jpeg?quality=70&strip=info&w=650)
Além do cancelamento de parte da programação do teatro, os problemas na gestão puderam ser percebidos pelo público no dia a dia. O ar-condicionado do local passou três meses quebrado — quem ia assistir a uma ópera precisava se contentar com janelas abertas e o barulho dos carros lá fora. A prefeitura explicou que a fiação, que está nas galerias subterrâneas do teatro, foi roubada.
Apesar da reforma de 28,3 milhões finalizada em 2011, a estrutura elétrica não foi totalmente modernizada. Os frequentadores mais prevenidos levavam leques, que trabalhavam em velocidade máxima. No último domingo, 28, o maestro Neschling chegou a passar mal de calor durante uma apresentação. No dia seguinte, o equipamento foi reparado. Afinal, mais quente do que a encenação que se passa nos bastidores do teatro, impossível.